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Brincadeira sem graça

No Brasil, a incidência maior de bullying está entre os adolescentes na faixa de 11 a 15 anos de idade

Aos quatro anos, a jornalista Jéssica Balbino foi impedida por outros alunos de participar de uma brincadeira na escola. Até então, possuir alguns quilos a mais nunca havia sido um problema para a garotinha, mas naquele momento, ela estava sendo rejeitada pelas crianças por ser “gor-da” – assim mesmo, enfaticamente – como uma das coleguinhas fez questão de frisar. Triste, a menina começou a chorar, mas nem assim as gozações cessaram: ao contrário, a turma ganhou cada vez mais “munição” para seus ataques.

Situações como a vivenciada pela jornalista são comuns e podem ocorrer, com maior ou menor intensidade, em todas as instituições de ensino, sejam elas públicas ou particulares. Trata-se do fenômeno que os especialistas chamam de bullying, palavra inglesa derivada de bully – cuja tradução corresponde a algo como valentão ou tirano – utilizada para designar as manifestações de violência física ou psicológica contra qualquer indivíduo que fuja dos padrões considerados “normais” pela sociedade.

Os bullies – como também são conhecidos os agressores – escolhem os alunos que estão em franca desigualdade de poder, seja por uma questão socioeconômica, de idade, de porte físico ou até porque estão em menor número. A isto, soma-se o fato de que as vítimas, de forma geral, já apresentam determinada característica que destoa do grupo (são tímidas, introspectivas, nerds, muito magras, de credo, raça ou orientação sexual diferente, etc.); o que, por si só, já as tornam mais vulneráveis aos ofensores.

No caso de Jéssica, o episódio relatado foi apenas o primeiro – e também o mais marcante – dentre os diversos atos de discriminação dos quais ela foi vítima durante toda a sua infância e adolescência. Os agressores eram os colegas de classe, incentivados, muitas vezes, pela omissão dos professores. “Sofri muito: enfrentei momentos de depressão, principalmente na fase em que todos começaram a namorar e eu nunca era escolhida pelo fato de ser gorda e das consequentes brincadeiras de mau gosto; por conta disso, também era menosprezada e excluída de vários passeios. Isso me magoava demais. Os momentos de solidão eram os piores”, desabafa.

Embora a rejeição tenha deixado marcas, ela conseguiu dar a volta por cima, mesmo sem ter procurado a ajuda de um profissional: hoje em dia, Jéssica consegue reagir bem a qualquer tentativa de exclusão por esse motivo. A jornalista acredita que a chave para superar este trauma é o amor próprio. “Eu sempre fui muito otimista e, apesar de tudo, nunca deixei de acreditar em mim. Por conta de ser tolhida de brincadeiras, me refugiava na sala de aula, nos livros. Isso fez com que eu desenvolvesse mais o intelecto e me destacasse pelo meu desempenho, preservando a minha autoestima”, relembra orgulhosa.

Para a jornalista, os pais e educadores precisam ficar atentos ao comportamento de seus filhos: nem sempre eles têm a exata dimensão de quanto determinadas “brincadeiras” machucam o seu alvo. Ela considera que investir em informação é essencial: as crianças também precisam saber que isso existe, temer as consequências caso pratiquem e saber a quem recorrer diante do problema.

Aos que são vítimas de agressão, Jéssica aconselha. “Não se intimide: jamais se cale. Busque ajuda. Por isso, considero muito importante falar e expor o problema, não se esconder atrás das máscaras. Muitas pessoas enfrentam a mesma situação e quando veem alguém que já superou e conseguiu reagir, tomam coragem de lidar com isso, de se libertar do bullying”, sentencia a jornalista que, classifica o lançamento do seu livro “Traficando Conhecimento”, como o momento mais mágico de sua vida. “Eu estava no meio de 400 pessoas que me queriam tão bem: de certa maneira, essa foi a minha resposta a todos àqueles que me escorraçaram a vida inteira”.

Meninos são mais visados,

meninas sofrem mais

O bullying é um fenômeno presente em quase todas as escolas do mundo

Quanto mais frequentes os atos repetitivos de maus tratos contra um determinado aluno, mais longo é o período de duração da manifestação dessa violência. A repetição das ações de bullying fortalece a iniciativa dos agressores e reduz as possibilidades de defesa das vítimas, indicando ser essencial uma ágil identificação dessas ações e imediata reação de repúdio e contenção. Essa foi a conclusão a que chegou a ONG Plan Brasil, responsável pela pesquisa “Bullying no Ambiente Escolar”, realizada em 2009.

De acordo com o levantamento – do qual participaram 5168 estudantes, de 25 escolas localizadas nas cinco regiões do país – o bullying é mais comum nas regiões sudeste e centro-oeste do Brasil: a incidência maior está entre os adolescentes na faixa de 11 a 15 anos de idade, matriculados na sexta série do ensino fundamental. O número de vítimas é maior entre os alunos do sexo masculino. Mais de 34,5% dos meninos que responderam ao questionário sofreram maus tratos ao menos uma vez no ano letivo de 2009, sendo 12,5% vitimas de bullying, caracterizado por agressões com frequência superior a três vezes.

Apesar disso, os garotos tendem a minimizar a gravidade destas situações, encarando-as como uma brincadeira de mau gosto, diferentemente das meninas, que manifestam sentimentos de tristeza, mágoa e aborrecimento. O professor, palestrante e consultor educacional da ONG “Um Milhão de Amigos” (com sede em Salto) – cujo objetivo é difundir a cultura de paz nas escolas e combater toda e qualquer forma de violência – Lucas Brassalotti, explica que as reações aos ataques variam conforme a personalidade da pessoa agredida.

“Com as crianças mais introspectivas, a atenção deve ser redobrada, pois a vítima tende a não contar nada para os adultos, mesmo sabendo que eles podem ajudá-la. Mas, independente de seu comportamento, a pessoa sempre deixa ‘recados’ ou ‘pistas’ de que está sofrendo”, alerta. Por essa razão, é tão importante que os pais dialoguem com seus filhos, para que eles tenham liberdade para se expressar caso sejam violentados.

Em contrapartida, Lucas lembra que o aluno agressor é refém das circunstâncias que o levaram a ser violento: comumente, tais atitudes originam-se da carência de afeto das pessoas com as quais ele convive, em função do ambiente no qual foi criado – muitas vezes em lares desestruturados – ou até mesmo de seu temperamento. Assim, fica claro que sensação de superioridade, o disfarce dos problemas (fraqueza, frustração) e a própria maldade são herança de experiências anteriormente vividas que tem a necessidade de se rebelar ou de traços psicológicos do próprio bullie.

“Nas ações realizadas em conjunto com a ONG ‘Um Milhão de Amigos’, pudemos ajudar tanto vítimas quanto agressores, pois todos os personagens que participam do bullying necessitam de orientação. O mais importante é que algo seja feito para mudar esta dolorosa situação, antes que consequências mais graves possam ocorrer. As pessoas não devem e não precisam sofrer caladas, muito menos se isolar ou abster-se do convívio social”.

Para que as iniciativas alcancem o resultado esperado, é preciso que a vítima procure ajuda o quanto antes e não tenha medo de retaliações, simultaneamente a atuação conjunta das diferentes esferas envolvidas – pais, professores e dirigentes das escolas. Lucas admite que essa integração é um grande desafio, mas há a disposição de enfrentá-lo: ele faz questão de frisar que a ONG está com “as portas abertas” para parceria com todos os segmentos da sociedade.

Apesar de todos os esforços, o consultor também está ciente de que existem muitos entraves, principalmente no âmbito escolar. “Sabe-se que casos de violência ocorrem, mas há uma dificuldade em diferenciar as brincadeiras próprias da idade das ações violentas intencionais e repetitivas, que caracterizam o bullying. Além disso, os professores lidam com vários alunos ao mesmo tempo, o que impede, muitas vezes, que haja o acompanhamento adequado de todos os problemas de agressão ocorridos em sala de aula. Por isso, é crucial que os profissionais de educação sejam capacitados para enfrentar o problema”.

Sem panos quentes

Autora de “Bullying: Mentes Perigosas nas Escolas” (Editora Objetiva / Fontanar), a médica Ana Beatriz Barbosa Silva – que possui pós-graduação na área de psiquiatria – pensa de forma semelhante. Em seu livro, ela frisa que a ação das escolas perante o assunto ainda está em fase embrionária. A maioria absoluta não está preparada para identificar e enfrentar a violência entre seus alunos ou entre os estudantes e o corpo acadêmico. Essa situação se deve a muito desconhecimento, muita omissão, muito comodismo e a uma dose considerável de negação da existência do fenômeno.

“Para começar a virar esse jogo, as escolas precisam, inicialmente, reconhecer a existência do fenômeno em suas diversas formas e tomar consciência dos prejuízos que ele pode trazer para o desenvolvimento educacional e a estruturação da personalidade de seus estudantes: as instituições de ensino têm o dever de conduzir o tema a uma discussão ampla, que mobilize toda a sua comunidade. Bullying é um fato e não dá mais para botar panos quentes nas evidências”, arremata.

Ana Beatriz também chama a atenção para o fato de que todas as vítimas, sem exceção, sofrem com as humilhações (em maior ou menor intensidade). Para algumas delas, porém, mesmo após a interrupção dos ataques, as consequências advindas dessas agressões tendem a se propagar por toda uma existência, em função de experiências traumáticas difíceis de serem removidas da memória. Em casos mais graves – quando a violência é intensa e contínua – a pessoa pode chegar a cometer suicídio ou então praticar atos desesperados.

No Brasil, um dos episódios mais trágicos aconteceu na cidade de Taiúva (SP), em janeiro de 2003, quando o jovem Edimar de Freitas, de 18 anos, entrou armado na escola na qual havia concluído o ensino médio. Atirou contra 50 pessoas que estavam no pátio, feriu oito e se matou em seguida. As investigações apontaram que a chacina foi motivada pelas constantes humilhações que o estudante sofria por ser obeso. Outro detalhe merece ser mencionado: Edimar chegou a emagrecer cerca de 30 quilos, mas mesmo assim continuou sendo hostilizado.

Por fim, a psiquiatra faz questão de dar uma dica especial aos agressores: segundo ela, ser lembrado pelos horrores que foi capaz de provocar é o equivalente a entrar para a história como um terrorista. “Isso só desperta péssimas e traumatizantes recordações. Trate bem os nerds, os diferentes, os excêntricos, os exóticos: o exercício da gentileza, da generosidade e da tolerância é transformador na vida de qualquer um. A ciência revela que a prática dessas ações faz muito bem à saúde”. Ana Beatriz tem razão.

Cyberbullying:

extrapolando os muros das escolas

Com a evolução da tecnologia, muitos equipamentos foram incorporados ao cotidiano das pessoas, modificando a forma como os seres humanos se relacionam. Mas, infelizmente, a exploração das novas possibilidades nem sempre é feita de forma sensata: tais recursos também podem ser usados para discriminar e incitar o ódio, perpetuando comportamentos agressivos. Essa é a premissa do chamado cyberbullying ou bullying virtual, considerado por especialistas uma das variações mais agressivas e preocupantes do fenômeno.

Ana Beatriz Barbosa Silva, autora da cartilha lançada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva explica que, nesta modalidade, os ataques são realizados por meio de ferramentas como celulares, filmadoras, máquinas fotográficas, além, é claro, da internet – e-mails, redes sociais, e vídeos são apenas algumas das plataformas utilizadas. Os traumas e consequências advindos do bullying virtual são dramáticos: a propagação das difamações é praticamente instantânea e o efeito multiplicador do sofrimento, imensurável.

“O ciberbullying extrapola, em muito, os muros das escolas e expõe a vítima ao escárnio público, atingindo-a da forma mais vil possível e sem qualquer constrangimento, já que os praticantes de tamanha perversidade também se valem do anonimato. Quero crer que é possível recuperar a grande maioria dessa juventude amarela, que, trancafiada em seus quartos, ‘brinca’ de fazer maldade com os demais”, desabafa Ana.

Na outra ponta, a internet pode se tornar um eficiente instrumento de combate ao problema, conforme ressalta o professor e consultor educacional da ONG “Um Milhão de Amigos”, Lucas Brassalotti. “Da mesma maneira que é utilizada para destruir ou discriminar, a rede pode ajudar a propagar ideias contrárias ao bullying, tornando-se um canal para a disseminação de valores e pensamentos que estruturam a cultura de paz”.

Lucas conta que este tema já foi explorado pela ONG saltense durante o ano passado, por meio de encontros e palestras que trabalharam diretamente com os alunos a conscientização dos perigos que envolvem as redes sociais. Mas, como os investimentos em novas tecnologias aumentam a cada dia, esta é uma atividade contínua, que não pode parar: ao contrário, intensificar os esforços é uma medida necessária.

Preste atenção aos sinais

No ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou uma cartilha, elaborada por Ana Beatriz Barbosa Silva, para ajudar pais e educadores a prevenir o problema. No material, a psiquiatra descreve os indícios de que a criança ou adolescente pode estar sendo vítima, ou então, cometendo bullying. Fique atento e, se for o caso, procure a ajuda de um profissional ou de uma ONG especializada.

Como se comportam as vítimas:

– Na escola:

  • No recreio, encontram-se isoladas do grupo, ou perto de alguns adultos que possam protegê-las;
  • Mostram-se comumente tristes, deprimidas ou aflitas;
  • Nos jogos ou atividades em grupo sempre são as últimas a serem escolhidas ou são excluídas;
  • Em alguns casos, podem apresentar hematomas, arranhões, cortes, roupas danificadas ou rasgadas.

– Em casa:

  • Frequentemente se queixam de dores de cabeça, enjoo, dor de estômago, tonturas, vômitos, perda de apetite e insônia;
  • Apresentam mudanças frequentes e intensas de estado de humor, com explosões repentinas de irritação ou raiva;
  • Geralmente, têm poucos ou mesmo nenhum amigo;
  • Passam a gastar mais dinheiro do que o habitual na cantina ou com a compra de objetos diversos com o intuito de presentear os outros;
  • Apresentam diversas desculpas (inclusive doenças físicas) para faltar às aulas.

Como se comportam os agressores:

– Na escola:

  • Os bullies fazem brincadeiras de mau gosto, gozações, colocam apelidos pejorativos, difamam, ameaçam, constrangem e menosprezam alguns alunos;
  • Furtam ou roubam dinheiro, lanches e pertences de outros estudantes;
  • Costumam ser populares e estão sempre enturmados;
  • Divertem-se à custa do sofrimento alheio.

– Em casa:

  • Mantêm atitudes desafiadoras e agressivas com os familiares;
  • Agem com arrogância, demonstrando superioridade;
  • Manipulam pessoas para se livrar das confusões em que se envolvem;
  • Costumam voltar da escola com objetos ou dinheiro que não possuíam;
  • Muitos agressores mentem, de forma convincente, e negam as reclamações da escola, dos irmãos ou dos empregados domésticos.

reportagem de: Piero Vergílio

foto: Microfoto

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