No mês de celebração do Dia Internacional da Mulher, Revista Regional traz uma entrevista exclusiva com um dos maiores símbolos da força e coragem feminina em nosso país. Maria da Penha não apenas sobreviveu a duas tentativas de assassinato cometidas por seu próprio marido, como também quebrou paradigmas de uma sociedade machista e foi à luta para que o agressor não ficasse impune. Depois de levar seu caso a conhecimento público, foi buscar na justiça internacional o apoio que não conseguiu no Brasil para garantir que ele fosse preso e pagasse pelo crime. Com isso, ganhou notoriedade e foi mais além: motivou a lei que mudaria para sempre o destino das mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil. Aproveite a oportunidade e conheça um pouco mais sobre a trajetória desta guerreira que venceu os próprios medos e o preconceito de toda uma época para dar a volta por cima e permitir o mesmo para milhões de mulheres que passam pela mesma situação.
Como é ser um símbolo na luta contra a violência doméstica no país?
É uma grande responsabilidade, pois nunca imaginava que minha luta chegasse aonde chegou, mas o mais importante é que hoje as mulheres têm uma Lei para protegê-las e ajudá-las a viver sem medo, longe da violência.
De onde veio a força para lutar por uma vida digna de paz depois de tantos anos de sofrimento?
Minha força vem de Deus. Nunca me deixei abater pelas derrotas. Meu agressor foi duas vezes julgado e condenado e saiu do Fórum em liberdade por conta de recursos dos seus advogados de defesa, porém sempre consegui me recuperar e continuar batalhando e a recompensa chegou, pois faltando apenas seis meses para o crime prescrever, o Brasil foi condenado internacionalmente pela Organização dos Estados Americanos – OEA e o meu agressor foi preso.
Como era seu relacionamento com Marco Antonio? A senhora se lembra a partir de que momento o casamento passou a ficar conturbado?
No início ele se mostrou educado, prestativo, atencioso, sem nenhum traço de violência ou agressividade. Após o nascimento de nossa segunda filha, que coincidiu com a sua naturalização brasileira (ele é colombiano de Medellín), Marco Antônio mudou completamente o seu comportamento tornando-se intolerante, opressor e agressivo comigo e com as filhas.
Como reagiu às primeiras agressões?
Passei pelo que passa todas as mulheres, primeiro achava que o problema estava comigo e fazia de tudo para não aborrecê-lo com problemas domésticos. Tentava deixar tudo em ordem para que ele não reclamasse de nada ao chegar em casa do trabalho. Nem mesmo as crianças podiam chorar, pois com isso desencadeava reações violentas em Marco. Foi uma época de terror onde vivíamos acuadas dentro de casa. Quando eu falava em separação ele reagia muito mal e dizia para eu parar com esses assuntos que ele jamais iria se separar.
Naquela época era mais difícil para a mulher procurar ajuda ou fazer denúncias contra o marido? Por quê?
Quando Marco Antônio atentou contra a minha vida (1983) não existia nem mesmo Delegacia da Mulher no Brasil, pois a primeira só foi inaugurada em 1985 em São Paulo e em Fortaleza (domicílio de Maria da Penha) em 1986. Hoje podemos contar, além da Delegacia da Mulher, com os outros equipamentos que atendem a Lei, como: Casa Abrigo, Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher e Centro de Referência da Mulher onde a mulher pode se inteirar de seus direitos e com isso decidir se quer ou não denunciar.
Quando e como decidiu que precisava fazer algo para reverter aquela situação? Em sua opinião, por que tantas mulheres não denunciam os maridos que as agridem?
Sabemos que exceções sempre existem, mas, geralmente, a mulher suporta a violência doméstica porque passa por um misto de sentimentos, como: sentimento de fracasso e vergonha por uma relação que não deu certo, medo de romper com a relação e não conseguir criar os filhos sozinha (uma vez que a maior parte dos agressores é também o provedor da família), medo da discriminação por ser uma mulher “separada” e por isso é muito difícil para ela tomar a atitude de denunciar o pai dos seus filhos e a pessoa que pensou seria seu companheiro para a vida inteira.
Ainda vivemos em uma sociedade machista?
Vivemos em uma sociedade machista em que a mulher precisou lutar muito para conquistar cada espaço que ocupa hoje, seja na vida social, profissional ou amorosa. Temos o conhecimento de que uma cultura não se transforma do dia para a noite. Para mudarmos consciências e conceitos, precisamos de tempo, mas o mais importante é que agora temos uma Lei que implementa os direitos humanos da mulher. A Lei Maria da Penha veio resgatar a dignidade da mulher. Mas é bom que se diga que esta Lei não veio para punir os homens, ela veio punir o homem agressor que não sabe respeitar sua mulher como pessoa humana.
Em que contexto surgiu a ideia de criar a Lei Maria da Penha? Como foi todo o processo, desde a criação da lei até sua concretização?
Em maio de 1983 fui vitimada pelo meu então marido, Marco Antonio Heredia Viveros com um tiro nas costas enquanto dormia e fiquei paraplégica. Marco Antônio por duas vezes foi julgado e condenado, mas saiu em liberdade devido a recursos impetrados por seus advogados de defesa. Em 1998 fui orientada a denunciar o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, e o fiz em conjunto com duas ONGs: CLADEM (Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher) e CEJIL (Centro pela Justiça e o Direito Internacional). Após a tramitação do processo naquela Comissão, em 2001 o Brasil foi condenado internacionalmente por tolerância e omissão estatal que não foi exclusiva do meu caso, mas era pauta sistemática nos casos de violência doméstica no Brasil. A condenação do país trouxe também obrigações que deveriam ser cumpridas. Uma delas foi a mudar a Legislação, que só foi implementada no governo do presidente Lula, que tão logo assumiu criou a Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres, que trabalhou em conjunto com ONGs especializadas na problemática da mulher e de reconhecimento internacional e juristas renomados para a criação da Lei Maria da Penha, que foi aprovada por unanimidade na Câmara e no Senado Federal.
Que mudanças esta Lei trouxe às mulheres vítimas de violência?
A Lei Maria da Penha é uma ação afirmativa onde são tomadas providências para corrigir uma injustiça histórica contra a mulher. Hoje as mulheres se sentem mais encorajadas a denunciar, pois a Lei prevê que em cada município com mais de 60 mil habitantes seja implantado os equipamentos como: Delegacia da Mulher, Casa Abrigo, Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Centro de Referência da Mulher e também uma equipe multidisciplinar (advogados, psicólogos, assistentes sociais) para que a mulher se sinta amparada e protegida quando tomar a decisão de denunciar.
Como a senhora avalia a aplicação da Lei Maria da Penha em nosso país?
Muito ainda falta. A mudança de consciência da sociedade machista sobre os direitos humanos da mulher, esta, sabemos que precisa de mais tempo para acontecer, porém temos muita gente de bem, engajada nessa luta. Homens e mulheres que sonham com uma sociedade mais humana para seus filhos e netos. Por todos os lugares onde viajo participando de eventos e proferindo palestras sobre minha história de vida e a Lei Maria da Penha, escuto depoimentos emocionados de mulheres que se auto-intitulam “salvas pela Lei”. Dados estatísticos comprovam que o número de denúncias aumentou na Delegacia da Mulher de Fortaleza porque agora as mulheres se sentem mais respaldadas para denunciar, pois podem contar com os equipamentos que atendem a Lei Maria da Penha.
O que é o Instituto Maria da Penha? Como ele funciona?
O Instituto Maria da Penha com sede em Fortaleza e com representação em Recife é uma organização não governamental sem fins lucrativos, dedicada a contribuir e fortalecer mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Seu objetivo geral é estimular e contribuir para a aplicação integral da Lei Maria da Penha no monitoramento da implantação e desenvolvimento das melhores práticas e políticas públicas para o seu cumprimento, construindo uma sociedade sem violência doméstica e familiar contra a mulher e com equidade de gênero.
entrevista e texto: Caroline Rizzi
foto: Divulgação