Após se despedir da Dona Neném de ‘A Grande Família’, na qual interpretou durante 14 anos, a atriz Marieta Severo fala sobre novos projetos, e as saudades que sua personagem carismática deixará no coração dos brasileiros. “A visão dela era sempre através do coração, do afeto, do amor. Ela sempre era capaz de compreender todo mundo daquela família. Compreender através do coração é a melhor maneira de você enxergar o outro”, conta ela sobre o que aprendeu durante esses anos de convivência com a personagem. “As últimas gravações foram quase que melancolias. Terminamos o programa como sonhamos! Muito querido pelo público”, lembra. De volta ao teatro, e com personagem totalmente antagônico, ela interpreta a árabe Nawal, cuja vida é atravessada por décadas de uma guerra civil. “A peça pra mim vai tocar particularmente em questões que me interessam muito, que é falar sobre a violência que nós vivemos, que não é declarada, de uma guerra civil latente que a gente finge que não tem”.
Revista Regional: Como foi pra senhora se despedir de ‘A Grande Família’, que conquistou milhões de brasileiros? Todos com certeza se sentirão órfãos da Dona Neném…
Marieta Severo: Eu fiquei de luto! É muito avassalador fazer um personagem durante 14 anos. A maneira como ele entra e se apossa de você é muito especial! Eu nunca tive uma experiência como essa, e não terei novamente. É única! Depois do convívio que tive com os meus colegas, com aquela família que nos tornamos, é muito difícil se despedir. É algo muito grande na vida profissional da gente. As últimas gravações foram quase que melancolias. Há três anos nós havíamos combinado com a emissora, que este final estava chegando. Este com certeza foi um ano muito especial, em termos de criatividade, de linguagem, de autoria. Nós fomos aos poucos nos despedindo. Quando gravávamos o programa do Dia das Mães, a gente sabia que era típico, porque todo ano tinha. E nós sabíamos que aquele era o último. Nós tínhamos algo peculiar que era estar em volta da mesa, que simbolizava muito o encontro da família, e enquanto estávamos ali, era um encontro nosso também. Enquanto esperávamos arrumar a iluminação, corrigir a câmera, tínhamos um momento familiar entre os atores. Falávamos muitas bobagens, conversávamos sobre tudo, ríamos e nos divertíamos muito. Esse ano quando sentávamos juntos, a gente pensava que estava acabando, e que estávamos vivendo as últimas vezes daquele encontro.
A senhora acha que o programa acabou na hora certa?
Eu acredito que sim! Sempre conversamos, desde o início, que a nossa preocupação era não sair sendo rejeitado pelo público, e sim sair com o programa com aceitação e qualidade. É um programa que não repousou sobre os louros. Ele sempre procurou melhorar. Conversamos com cada diretor. O Maurício (Farias) que ficou a maior parte do tempo. Depois veio o Luiz Felipe (Sá) com a Patrícia (Pedrosa) e a Olívia (Guimarães)… Existia aprimoramento constante. Terminamos o programa como sonhamos! Muito querido pelo público. Quer dizer, se nós quiséssemos ter continuado, nós teríamos. Houve um acordo entre os atores, que 14 anos era um bom tamanho. Cada um já estava querendo ter outras experiências.
O que a senhora pretende fazer agora? Haverá um descanso de imagem? Ficará um tempo fora do ar? Quanto?
Tive sorte e surpresa, porque durante o segundo semestre do ano passado fiz duas coisas, que era ‘A Grande Família’ e a peça ‘Incêndio’. Eu tenho esse privilégio de ter esse grande sucesso teatral nas mãos. Quero usufruir com tranquilidade. Não estou, apesar da minha família não acreditar, aceitando novos trabalhos. Vou dedicar-me somente à peça. Em março viajaremos com ela. Também faremos uma temporada popular no Rio de Janeiro, porque deixamos muito público por lá. Minha vida agora é essa! O que me ajuda muito, pra não ficar um buraco tão grande.
São 48 anos de carreira, entre novelas, filmes e teatros. A senhora diria que a Dona Neném foi quem mais marcou sua trajetória?
Com certeza! Nada será parecido! Ela marcou no tempo mesmo. Não só no sentindo de estarmos fazendo um programa. Nós tínhamos consciência que era algo muito especial dentro da televisão. Um programa com qualidade e com adesão de público muito grande. O tempo é algo muito poderoso! Eu nunca, nem antes e nem depois, vou ter vivido um personagem e compartilhado com colegas durante tanto tempo. Fui recentemente participar do programa da Fátima Bernardes (‘Encontro’) e quando entrei no estúdio onde nós gravávamos, meu Deus! Eu perguntei onde estava a minha casinha? Cadê todo mundo? Pra onde vão esses fantasmas? O programa terminou de maneira muito especial, com uma metalinguagem onde outros atores puderam fazer os nossos personagens, que é muito bonito. Os personagens independem dos atores. A Dona Neném poderá ser feita por outros, o Lineu (Marco Nanini) o Tuco (Lúcio Mauro Filho), a Bebel (Guta Stresser) independem de nós. Eles continuaram existindo. Os nossos vão existir no coração do público, na imagem.
Depois de todos esses anos, a senhora diria que o final para a Dona Neném foi satisfatório?
Fiquei muito feliz com o destino dela. Adorei essa virada que eles deram. Foi uma surpresa conseguir tirá-la de dentro de casa. Ela era muito feliz na casinha dela, mas chegou uma hora, que é aquela velha história, que muitas mulheres passam… A família fica por conta própria, e não precisam mais dela… Por isso, outras inquietações começam a surgir, e eles criaram histórias muito bonitas em torno desses conflitos. Achei lindo, que no último episódio, o Lineu foi atrás dela, entrando no mundo dela.
Levando em conta que esse seriado foi destaque na televisão brasileira, o que a senhora poderia dizer que aprendeu com a personagem?
Ela tem uma característica que me agrada muito. A visão dela era sempre através do coração, do afeto, do amor. Ela sempre era capaz de compreender todo mundo daquela família. Inclusive o Agostinho (Pedro Cardoso). Compreender através do coração é a melhor maneira de você enxergar o outro.
A senhora comentou sobre a peça ‘Incêndio’, na qual retorna aos palcos em São Paulo. O que mais te chamou a atenção no texto?
Quando nós fomos atraídos pelo texto, até mesmo depois de ter visto o filme, que é de grande qualidade, decidimos montar a peça porque ela tem enormes qualidades teatrais. Ela conta uma belíssima história. É uma saga, que pra mim, por exemplo, tem um valor especial. Quando o Felipe (Carolis – produtor) que é o descobridor deste texto trouxe pra mim e pro Aderbal (Freire Filho – diretor) nós queríamos estar no palco. Este foi o primeiro ponto. O segundo é a maneira como ele conta essa história. Ela não é linear, que tem começo, meio e fim… Ele tem uma capacidade de usar uma narrativa contemporânea, que acredita muito na força do teatro, que é o poder da imaginação do espectador, que caminha entre o tempo e o espaço com sabedoria. Outro detalhe é como ele consegue atrair e prender o público. Ele trabalha muitas vezes, quase que com signos de um thriller, criando suspense, pontos em que intrigam a plateia, que vão levá-los até o grande impacto final. A peça pra mim vai tocar particularmente em questões que me interessam muito, que é falar sobre a violência que nós vivemos, que não é declarada, de uma guerra civil latente que a gente finge que não tem. É poder falar também da minha geração. A minha personagem é uma mulher que viveu uma situação de prisão, de estupro, de tortura, de todas as limitações de uma guerra civil, de brigas políticas… Eu quero através dela, dar o testemunho da minha geração. Ela diz uma frase na peça que é: ‘Não há nada mais lindo que estar junto. Através de mim são os fantasmas que vos falam’. Esses serão os fantasmas da minha geração. Vou falar das mulheres que foram mortas, estupradas. Vou dedicar a Zuzu Angel que foi uma pessoa que acompanhei sua história. É claro que tem a fábula, mas o que nos levou a montar e remover montanhas pra colocar essa história em cena, foi a força poética que o texto tem. Cada noite nós estamos nos doando ao máximo.
A senhora comentou sobre a Zuzu Angel. Teve um feedback de outras mulheres que passaram pelo mesmo problema?
Com a Zuzu eu convivi. Nós éramos amigas de tablado, eu conhecia o estúdio dela, acompanhei a saga dela. Ela ia à nossa casa, falava tudo que estava acontecendo, que a estavam perseguindo, que ela deixaria uma carta, que tal atitude seria tomada… É algo que me toca porque convivi com esse drama, com essa tragédia. Convivi com a minha geração que passou muito por isso, várias famílias que passaram por situações de tortura. Procurei ler muitos depoimentos. Eu diria que até teria a oportunidade de conversar com essas pessoas, que até mesmo eu já trabalhei, mas não me sentiria à vontade. É claro que me alimentei dessas realidades. É muito delicado você lidar com essa dor avassaladora e cutucar. Eu tive muito pudor. Alimentei-me de muitos depoimentos.
Quanto tempo a senhora levou para compor a Nawal?
Nós tivemos um processo de ensaio de quatro meses. É uma peça difícil, com uma história trágica e ao mesmo tempo com muitas linguagens dentro dela, porque às vezes tem linguagem cotidiana, trágica ou poética. ‘Incêndio’ tem uma narrativa fragmentada que passeia muito no espaço. Uma hora está no Canadá outra no Líbano. No momento seguinte, ela está há 50 anos, e daqui a pouco está na frente. Ela é muito rica neste sentido. Por isso, eu sabia que era necessário um diretor que soubesse fazer essa transposição cênica. Basicamente gosto muito do diretor, e sei o que significa tê-lo me conduzindo. Gosto dessa brincadeira de ver pra onde ele está me levando. Eu não luto em seguir. Acredito nessa fé que o Aderbal tem no teatro. No poder de saber que pode ter elementos cênicos que vão na cabeça do espectador, que puxa a imaginação e faz com que ele acompanhe mesmo não sendo uma história linear. Com poucos elementos cênicos, os atores conseguem contar essa história. Eu penei bastante porque é um personagem difícil, uma mulher que passou por situações extremas. Difícil de sobreviver, porque o que ela passou, muitas não sobreviveriam. Ela tem uma força muito grande. Procurei ir atrás dessa força da melhor maneira pra contar essa história.
Depois da peça como a senhora voltava pra casa?
Não é tranquilo entrar e se apossar desse universo e deixar que ele penetre. Eu tenho 50 anos de carreira. Nós temos mecanismos de saber onde termina o trabalho. Quando a gente sai pra jantar, podemos até falar sobre o assunto, porque acho que o processo de ensaio é avassalador na vida da gente. Você não é normal e quem está por perto sabe. Eu tenho uma história que é terrível, com a minha filha. Quando eu produzi uma peça de teatro e na época era grande, ela tinha 14 anos, agora está com 38, quer dizer tem muito tempo. Foi muito trabalhoso porque eu produzia, e ficava em casa fazendo contas, e personagens, e coisas que tinham que vir da Inglaterra… No dia da estreia, ela abriu a porta do camarim e disse: ‘Oi mãe, lembra de mim?’ É assim terrível. A gente entra num túnel e nada mais importa. Tudo que vejo, penso e que me falam é pro cestão de personagens. Tem o tempo de estreia, e depois nós continuamos aprimorando, mas você já pariu… Esse período é muito avassalador. Com uma temática como esta você vai para lugares desagradáveis.
Existe alguma expectativa em relação ao público de São Paulo? Nós temos uma comunidade árabe muito grande e os personagens embalam esses conflitos.
Nós já sabemos a relação que a peça tem com a plateia. Nós estreamos no Rio e Janeiro pra ficar dois meses, mas voltamos e ficamos mais nove meses, devido ao sucesso. Já estávamos agendados para vir a São Paulo, caso contrário teríamos ficado mais tempo no Rio. Nós tínhamos as nossas dúvidas porque as pessoas querem ir ao teatro pra rir. A peça tem a capacidade de emocionar a plateia, e elas ficam envolvidas com a história, elas gostam dessa experiência. Essa é nossa alegria. As pessoas não querem apenas ir ao teatro pra dar risadas. Quando você propõe uma viagem mais interessante, mais densa, uma vivência mais profunda, a plateia responde. A Praça Roosevelt é muito característica de São Paulo. Eu e a Andrea (Beltrão) nos inspiramos pra criar o ‘Teatro Poeira’ que é a capacidade que o paulista tem de fazer teatro em qualquer lugar. Tem uma garagem, eles ocupam. Isso é muito interessante. Propicia uma efervescência cultural muito grande. No Rio os teatros ficam nos shoppings porque tem menos espaço. A característica paulista é muito interessante.
entrevista e texto de Ester Jacopetti
fotos: Divulgação/TV Globo