O restaurador Júlio Moraes já executou diversas obras no país, reavivando a memória de uma sociedade e recuperando o patrimônio histórico e artístico nacional. Atualmente, ele restaura as pinturas do altar mor da Matriz da Candelária, em Itu
Após serem encontradas pinturas nas paredes laterais do altar mor da Igreja Matriz de Nossa Senhora Candelária, em Itu, o escritório Júlio Moraes Conservação e Restauro Ltda. foi contratado novamente [o restauro do teto da capela mor foi feito pelos mesmos profissionais em 2001] para realizar os trabalhos de conservação e restauro das pinturas recém-encontradas. O renomado restaurador Júlio Moraes e sua equipe ficarão por um bom tempo trabalhando nas pinturas da Matriz, e ao final da obra, ele promete: “O resultado será uma surpresa a todos”. Além da Matriz, a equipe já efetuou outros trabalhos em Itu, na Igreja de Santa Rita, Igreja do Bom Jesus, Nossa Senhora do Patrocínio e do Carmo.
Júlio Moraes, que deu início à empresa, é formado em Artes Plásticas pela USP há quase 40 anos. Seu interesse pelo restauro teve início quando era apenas um adolescente, sem nem saber direito do que se tratava. “Eu fiz umas visitas com um professor de Artes Plásticas que eu tinha no ginásio vocacional, e ele nos levou às cidades históricas de Minas Gerais e também para Itu. Aqui, visitamos essa igreja [Matriz de Nossa Senhora Candelária], Patrocínio, Carmo e Bom Jesus. Eu lembro muito bem. Com essas visitas todas e muitas outras coisas, de valor cultural e histórico, eu fui criando certa aflição com o estado físico das coisas. Lembro a primeira vez que estive em Ouro Preto e tive uma sensação ambígua, ao mesmo tempo em que fiquei deslumbrado, tinha uma aflição em ver tudo caindo aos pedaços. É como se apaixonar por uma pessoa e ver que ela está morrendo”, detalha o profissional. Na época de ingressar na faculdade, ele escolheu Artes Plásticas e assim que se formou foi trabalhar em outra coisa. Aconselhado por um professor – uma espécie de conselheiro, segundo Júlio – foi atrás de seu sonho e com a ajuda do mesmo, conseguiu um emprego na área de patrimônio histórico. Posteriormente, especializou-se em Restauração de Pintura de Cavalete na Cidade do México, e Ciência aplicada à Conservação e Restauro, em Roma. Trabalhou no Departamento de Patrimônio Histórico na Prefeitura de São Paulo e no Museu de Arte Contemporânea da USP.
Hoje, com mais três sócios, comanda uma equipe com quase 30 técnicos, em São Paulo, e realiza projetos como a conservação de pinturas de cavalete, peças de cerâmica, arqueológicas e sacras e até a restauração de prédios históricos, como igrejas, caso da Matriz da Candelária, em Itu. Com quase quatro décadas de história e centenas de restauros no currículo, Júlio afirma que a sociedade mudou muito nos últimos anos com relação à preservação do patrimônio histórico. “A grande virada foi nos anos 1980. Eu senti essa mudança. Nos anos 1970 houve as grandes demolições em São Paulo, eu sou de lá, e vi a avenida Paulista ir ao chão quase que da noite para o dia, assim como bairros inteiros serem destruídos. O patrimônio edificado é a parte visível da perda da nossa memória. Os outros patrimônios, como falas dialetais, sotaques regionais, músicas, danças e receitas culinárias, por exemplo, esses desaparecem e a gente não vê. Existe uma frase muito conhecida que diz: ‘O povo que não conhece sua história se condena a repeti-la indefinidamente’, e é verdade. Uma sociedade que não sabe quem é, de onde veio e como se formou, é como uma pessoa com amnésia”, explica Júlio.
Com diversas obras e monumentos históricos passados por suas mãos, Júlio conta que todos são importantes para a equipe e destaca alguns como restauro de pinturas (de 1911) no Teatro Municipal de São Paulo, restauro dos forros policromados da capela do Sítio Santo Antônio (de 1641-1691), em São Roque, restauro de pinturas murais e elementos arquitetônicos e decorativos no Theatro Pedro II (de 1929), em Ribeirão Preto e o recente restauro de 21 pinturas murais do Museu “Casa de Portinari” (de 1936-1960), em Brodowski, além de muitos outros. “A capela do Sítio Santo Antônio, em São Roque, é considerada, pelo Lúcio Costa, o exemplar mais antigo e existente hoje de arte brasileira. É uma capela pequenininha, lindíssima, e propriedade do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Vale a visita!”, ressalta.
Questionado sobre a atual, e real, situação do patrimônio histórico no Brasil, o profissional afirma acreditar que o grande progresso é a conscientização do cidadão comum, algo que a seu ver, vem acontecendo. “As pessoas estão começando a ganhar essa consciência. Claro que existe um caminho longuíssimo a percorrer, vão passar gerações ainda, até a gente chegar num equilíbrio, onde a herança cultural faça parte da vida das pessoas como qualquer outra coisa. Mas vejo que as coisas estão evoluindo sim e as ações concretas são consequências disso”, encerra.
Desafios históricos
Confira trechos da entrevista exclusiva que Júlio Moraes concedeu, em Itu, para a Revista Regional.
Revista Regional: Como surgiu a Julio Moraes Conservação e Restauro?
Júlio Moraes: Eu sempre digo que nossa firma é um pouco diferente da maioria das firmas por aí. Ela não é o produto de um projeto, ela é um efeito colateral [brinca], ou seja, eu simplesmente era um jovem que queria trabalhar com restauro e comecei a trabalhar sozinho. Depois que entendi que minha maneira de trabalhar era por minha própria conta, comecei a fazer sozinho. Abri uma microempresa e trabalhei vários anos assim, até que um dia peguei um serviço grande e precisei de alguém pra me ajudar. Hoje somos quatro sócios. Desenvolvemos a nossa própria maneira de trabalhar. Claro que existe uma metodologia para intervenção e conservação de patrimônio cultural e, claro, que ela tem que ser observada. Ela é útil e funciona, mas, a maneira como nós nos articulamos para aplicar essa metodologia e como nos adequamos a ela, é uma maneira bastante nossa. Com o passar do tempo fomos trazendo outras pessoas e hoje temos graduados em Artes Plásticas e um que é formado em Conservação e Restauro propriamente. Somos entre 24 e 25 pessoas no total, contando com a parte administrativa.
O senhor restaurou o forro da capela mor da Matriz e fez a prospecção nas paredes laterais na mesma época. O senhor desconfiava das pinturas laterais ou foi uma surpresa?
Lembra que te falei que vim aqui com professores? Por volta de 1973, vim aqui com uma professora de história da arte brasileira, e eu achei curioso que as paredes laterais da capela mor eram de madeira, já que a professora tinha dito que era tudo de taipa de pilão. Ela explicou que as paredes não eram de madeira e sim revestidas, pois no Estado de São Paulo, no tempo da colônia, não se dominava a técnica de pintura mural, e como sobrava madeira, revestia-se e pintava a madeira. Mas na época que eu conheci a Matriz já estava tudo pintado de branco. Eu guardei isso que a professora falou durante mais de 30 anos e em 2001 quando fomos chamados pra fazer o restauro do forro da capela mor eu ficava de olho nessas paredes branquinhas. [risos] Um pouco antes de acabar o trabalho eu pedi licença ao Monsenhor Durval, pároco da época, e ele me permitiu fazer uma prospecção do lado direito. Não deu outra, apareceu a pintura, obviamente barroca. Hoje em dia, raríssimas. Eu só conheço duas com esse trabalho, essa (em Itu) e no Convento do Embu. Que eu lembre só essas.
Entre os trabalhos que efetuou até hoje, teve algo muito raro e/ou que te deu medo de fazer o restauro?
Quase todas são assim. Isso é engraçado, eu tenho quase 40 anos no restauro e até hoje, já não tremo mais como antes, mas o desafio que existe permanece. Cada obra de arte ou bem cultural que chega pra gente propõe sempre um desafio. O desafio que a gente encontra em cada obra assusta menos com o tempo e a experiência traz mais possibilidades de abordagem.
Dos trabalhos que efetuou em Itu, quais te encantam mais?
Além da Matriz e Santa Rita, fizemos uma prospecção, na Igreja do Carmo, com uma pessoa daqui de Itu, muito competente, e já percebemos que a pintura do forro não é do Jesuíno [Padre Jesuíno do Monte Carmelo], a dele está escondida por baixo daquela, aquele forro foi todo repintado. E um trabalho emocionante que fizemos aqui foi a Igreja do Bom Jesus, prospecção e depois participamos do projeto de restauro. Aquela igreja é de uma riqueza que ninguém pode imaginar quando vê. Ela tem dois forros policromados, que em minha opinião são de Jesuíno ou escola dele, e tem elementos remanescentes desde o século XVII até o século XX. Tem uma história inteira lá! Além disso, aquela igreja tem o teatro mais antigo do Estado, que não é um restauro difícil e tem história, história e história ali. Aquela igreja é um mundo. Pra mim foi um privilégio fazer prospecção lá.
texto e fotos: Gisele Scaravelli