A filósofa analisa a sociedade brasileira contemporânea, os protestos e a violência gratuita nas ruas do país
Viviane Mosé dispensa grandes apresentações. Graças à facilidade que tem de se expressar e de ser compreendida pelo grande público, esta filósofa contemporânea –como se intitula “filósofa do meu tempo” – mostra que a Filosofia pode, sim, ser pop. Também escritora, psicóloga psicanalista e especialista em elaboração e implementação de políticas públicas, mestre e doutora em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, esta grande pensadora da nossa atualidade traduz a filosofia para as massas através de artigos, comentários, programas de rádio, participações no “Fantástico” da TV Globo, e com aulas, inclusive para muitos famosos. “Hoje, as questões tipicamente acadêmicas já não importam tanto, a água está subindo, os desafios são muitos, a urgência nos obriga a pensar rápido, não dá tempo pra citar cada autor, livro, artigo, constando página, ano, editora”, ressalta. O reconhecimento é tanto que Viviane é uma das mais requisitadas para eventos corporativos, onde costuma explanar sobre os dilemas do ser humano, como felicidade, vida, morte, etc.. Conhecedora dos problemas da sociedade, a filósofa nos dá nesta entrevista uma aula sobre a atualidade brasileira, a violência gratuita, o regresso comportamental que temos visto nos noticiários, com depredações, saques, linchamentos, assim como as revoltas e os protestos iniciados há exatamente um ano, durante a Copa das Confederações. A análise minuciosa de Viviane não poupa nem a imprensa, a qual, segundo ela, tem se baseado na internet, principalmente nas redes sociais. “A imprensa tem sido levada pela internet, uma pena, porque falta análise em ambas, falta sofisticação intelectual, cultural, humana. A internet ainda é muito jovem e reflete o imediatismo das sociedades que temos, estas que ainda estão deslumbradas com a técnica”, comenta a filósofa. Nesta entrevista exclusiva concedida à Revista Regional, ela fala ainda sobre o conceito de felicidade que tanto buscamos, sobre educação, manifestações, o ódio destilado nas redes sociais e as perspectivas de um mundo diferente no futuro. Tanto que ela garante: “está surgindo um novo homem”.
Revista Regional: Viviane, a senhora é considerada a filósofa mais pop do país. É difícil ter essa missão de decifrar a Filosofia para a grande massa? De quais formas isso tem sido possível?
Viviane Mosé: Eu não sei bem o que significa ser uma filósofa pop, acho que confundem o pop com o contemporâneo, eu sou uma filósofa do meu tempo, disposta a pensar as demandas do meu tempo. Hoje, as questões tipicamente acadêmicas já não importam tanto, a água está subindo, os desafios são muitos, a urgência nos obriga a pensar rápido, não dá tempo pra citar cada autor, livro, artigo, constando página, ano, editora. Como disse, a água está atingindo nosso pescoço, e agora? Meu papel tem sido utilizar minha excelente formação acadêmica a serviço da cultura, da arte, da sociedade, da vida. Minha entrada na Rádio CBN foi definitiva, mas antes disso já havia me colocada a serviço da educação básica. Agora me preocupa a violência.
A senhora afirmou recentemente que o caos social que estamos vivendo está fazendo surgir um novo homem. Novo quer dizer melhor? Como seria ele?
Acho que temos sim um novo ser humano surgindo, e isto se dá em função de uma nova cognição, uma nova forma de ordenar, articular pensamentos, assim como uma nova forma de sentir. Antes pensávamos em linha, e nos orgulhávamos disso, da retidão, da exclusão das diferenças em nome da verdade; pensávamos opondo valores, a partir dos dois lados da linha. Hoje somos obrigados a pensar em rede, a articular diversas questões, a incluir os diferentes, mais do que afastar. Estou convicta de que se trata de uma mudança para melhor, estamos expandindo nossas possibilidades de raciocínio, estamos nos tornando maiores, mais amplos, e isto nos permite viver melhor as contradições, sem sofrer tanto. Mas muita coisa ainda deve acontecer, vivemos a transição entre dois modelos, um cai sobre nossas cabeças enquanto o outro ainda se configura, por isso o caos, mas aos poucos as coisas se reordenam, e para melhor, tenho certeza.
Como a Filosofia pode explicar esse momento da sociedade brasileira?
O Brasil é um grande país, e pode oferecer muito ao mundo, nestes novos tempos. Quem, como eu, conhece o Brasil sabe de sua imensa possibilidade, do Interior do Tocantins a São Paulo, do Rio Grande do Sul ao Pará vemos pessoas vivas, corajosas, inteligentes, com grande capacidade de convivência, vemos uma soma de culturas, gestos, vidas muito ricas. Mas o Brasil confunde o país com os governos, e desenvolveu uma baixa autoestima, e se denigre, se flagela. O Brasil deveria conhecer melhor seu território, sua história, suas lutas, seus movimentos sociais, suas enormes conquistas no decorrer dos séculos. Mas nosso “complexo de vira-lata”, como diz Nelson Rodrigues, prefere não ler, não estudar, não conhecer; hoje, com a internet, temos uma geração de indignados absolutamente mal informados, atirando, na maioria das vezes para lados errados, enquanto as grandes causas ficam esquecidas. Precisamos engrossar os movimentos sociais, mas preferimos apenas jogar pedras em quem passa, a virtualidade nos permite esta preguiça com cara de “ousadia”. Mas daqui a pouco tudo isso será antigo e ninguém mais levará a sério este ódio destilado da impotência. Enfim, o Brasil é muito melhor do que este mar de lama em que estamos entrando, mas precisamos aprender a distinguir o país de alguns dos seus governantes.
É mais difícil buscar a felicidade hoje do que na Idade Média? Por que?
A felicidade é uma ideia burguesa que já nos criou muitos problemas, e ainda cria. Em nome desta ideia, que só promete mas nunca cumpre, parte da juventude e da maturidade no mundo hoje acredita que o sofrimento seja sempre causado pelos governos, pelos poderes, pela exploração de uns sobre os outros. Mas não é bem assim. Conhecemos países sem as mazelas brasileiras, mas com altíssimo grau de sofrimento e violência. A vida é um desconhecimento, uma incógnita, e saber viver um talento raro. A ideia de felicidade é uma ilusão que nasceu para vender livros, produtos, mas a vida acontece em níveis mais elaborados. Ser feliz hoje é dinheiro, beleza, poder, quer dizer, ser feliz é consumir, inclusive pessoas. Eu não vim ao mundo para ser feliz, eu vim ao mundo para viver a vida com tudo o que ela tem para me oferecer, não abro mão dos conflitos, dos obstáculos. Eu não abro mão da dor, esta maturidade que nos torna mais humanos, mais éticos, e mais alegres. E torço para que este sonho adolescente de felicidade dê lugar a um conceito mais maduro de vida, com qualidade e alegria.
Desde o início das manifestações em junho passado, a senhora foi uma das poucas pessoas que assumiram uma preocupação com os protestos por terem uma pauta dispersa, sem foco específico, e por terminarem sempre com violência. A que a senhora credita os atos feitos daquela forma?
O que aconteceu no meio do ano passado foi um efeito viral, como tantos, com a diferença de que as pessoas foram para as ruas, ou seja, não se contentaram em clicar, curtir, compartilhar. Mas quando chegaram nas ruas, sem noção de política, desconhecendo a história de seu país, se frustraram, porque tentaram clicar a realidade, que não se transforma com um clique, dá muito mais trabalho. E daquela festa de rua ficou no ar a imensa indignação sem direção, que hoje pipoca em violência. As manifestações não foram sinal de amadurecimento político, muito ao contrário, representaram um retrocesso porque desconsideraram as lutas e conquistas anteriores, como se a cidadania no Brasil tivesse nascendo ali. Os problemas sociais são antigos e bastante complexos, não podem ser tratados da forma simplista e imediatista como estão sendo hoje. Se não conseguirmos canalizar a indignação em direção a causas específicas, poderemos ver a violência atingir níveis nunca vistos.
Com Copa e eleições, a senhora acredita que tais manifestações voltem a ocorrer desta forma ou houve um amadurecimento para pautas mais concisas?
Não imagino a classe média nas ruas tão cedo. Todos estamos vendo onde tudo isso deu. Mas teremos sempre alguns grupos, que, pelo extremismo nascido das manifestações, podem ainda produzir muita violência. O Brasil precisa de escolas críticas, atuantes, precisa formar cidadãos, sem isso ninguém faz política. Mas estamos no caminho, precisamos agora construir um modelo de gestão participativo, para que cada cidadão, de sua casa, possa, utilizando as novas mídias, saber o que acontece no posto de saúde, na escola de sua comunidade.
Como a senhora analisa as redes sociais, o excesso de exibicionismo, o culto ao ser perfeito, os ataques gratuitos etc? Entre prós e contras, até a imprensa se pauta nela hoje em dia. Não torna-se preocupante, já que nessas redes há muitos boatos e poucos fatos?
A imprensa tem sido levada pela internet, uma pena, porque falta análise em ambas, falta sofisticação intelectual, cultural, humana. A internet ainda é muito jovem e reflete o imediatismo das sociedades que temos, estas que ainda estão deslumbradas com a técnica. Daqui a pouco tudo será antigo, e teremos, inclusive pela democratização do acesso ao saber permitida pela rede, uma geração mais culta. Aí tudo será diferente. A internet como suporte tecnológico que nos liga uns aos outros, nos conecta, é excelente, o problema está nas redes sociais, no uso que estamos fazendo dela, mas aos poucos amadureceremos, e tudo isso se transformará.
Nas manifestações e também no dia a dia, ouvimos a população culpar governos e instituições por tudo. Em sua opinião, o povo está mesmo isento de qualquer culpa?
O marxismo e a psicanálise tem grande responsabilidade nisso, como saberes sistemáticos e piramidais, centrados no poder do um, localizaram o problema ou na família ou no Estado, no pai ou no governante. Mas hoje sabemos, a vida orgânica e não apenas a internet, funciona em redes que se autoimplicam. Todos temos responsabilidade por tudo, e podemos interferir em tudo. Não adianta mudar o pai, o presidente, o professor, o poder está nas relações, sempre múltiplas e variáveis. Mas ainda estamos longe de aprender a viver sem culpar alguém. O caminho das sociedades é a gestão comunitária, onde todos cuidam de tudo, dos investimentos, das conquistas. Hoje, a estratégia, ao contrário de construir e participar, é quebrar.
A questão da Educação é um problema dos governos? Por que a população ainda confunde público com governamental? Considerando seus vários livros sobre o assunto, fica a pergunta: ‘qual a solução definitiva para a Educação no Brasil?’
O Brasil precisa continuar investindo, como tem feito, mas em função do descaso de gerações, são muitos anos até produzir um resultado visível. Mas o mais importante nisso tudo é a consciência de que precisamos ler o mundo se quisermos de fato aprender a ler os livros, como bem disse nosso grande educador Paulo Freire. O Brasil precisa que sua Educação esteja voltada para a vida, para aprendermos a viver melhor. Hoje apenas repetimos, na melhor das hipóteses reproduzimos os “grandes”. Vejam, será que os grandes são grandes mesmo? Não seria a hora de uma Educação tipicamente brasileira?
Para concluir, é possível visualizar o mundo em curto prazo com otimismo? E a longo?
A curto prazo tudo é muito assustador, a violência cresce no mundo todo, uma violência sem rumo, produto da indignação sem perspectiva. As pessoas hoje estão empoderadas de comunicação, mas indigentes de capacidade de análise e de reflexão, o pensamento não foi um investimento do século XXI, ao contrário, foi a técnica, essa que nos deu a fibra ótica. Então falta poesia, filosofia, arte, falta sofisticação em nossas avaliações e análises; o ser humano, no que diz respeito ao propriamente humano, retrocedeu. Enfim, vivemos impasses ambientais, sociais, econômicos, tecnológicos, mas que, se enfrentados com ousadia podem nos oferecer excelentes perspectivas.
entrevista e texto: Renato Lima
foto: Divulgação