Em entrevista exclusiva, o renomado psicanalista esmiúça os desajustes do mundo atual, da ostentação nas redes sociais à corrupção
Que o mundo anda cada dia mais complicado não temos dúvidas. Que a sociedade contemporânea passa por problemas inéditos também não! O médico psicanalista Francisco Daudt da Veiga, um dos mais renomados do país, colunista do jornal Folha de S. Paulo, colaborador do programa da Fátima Bernardes na Rede Globo e autor de diversos livros, numa entrevista exclusiva à Revista Regional, interpreta a alma da sociedade atual e garante que embora as circunstâncias culturais sejam novas, o homem ainda mantém seu objetivo primordial que é a busca incessante pelo prazer e pela felicidade. “A cada circunstância cultural nova, essa busca pode ganhar aspectos periféricos diferentes. Vivemos uma era de abundância calórica e estímulo ao prazer imediato. Tudo o que nossa natureza faz é tomar carona nas oportunidades”, exemplifica. Durante a extensa conversa, Daudt esmiúça –com sua vasta habilidade de interpretar os fatos- toda a problemática atual: a exposição das pessoas nas redes sociais, a ostentação e o exibicionismo, os dilemas na educação dos filhos, as recentes manifestações pelas ruas do país, e até mesmo a corrupção.
Revista Regional – O senhor, como poucos, sabe interpretar a alma da sociedade atual. Ela é tão diferente das outras de décadas atrás ou o conceito é o mesmo da busca incessante pela felicidade?
Daudt – As pressões que nossa genética -que a natureza, portanto- exerce sobre nosso comportamento sempre incluíram, e incluirão, a busca por prazer, que é a base do impulso de reprodução -sexual, portanto-. A cada circunstância cultural nova, essa busca pode ganhar aspectos periféricos diferentes. Vivemos uma era de abundância calórica -epidemia de obesidade- e estímulo ao prazer imediato. Tudo o que nossa natureza faz é tomar carona nas oportunidades. Na savana africana não havia essa moleza, mas havia também o imediatismo voltado à sobrevivência.
O que difere esse conceito de felicidade que temos hoje de antigamente? É saudável, por exemplo, esse extremismo de se “apresentar” feliz o tempo todo nas redes sociais ou a cada flash?
Novamente a natureza nos empurra: a autoestima elevada -ou a aparência dela-, assim como a riqueza material, sempre foram um poderoso atrator sexual. Hoje temos a oportunidade extrema de propagandear uma pseudoautoestima, ou nos fotografar exibindo uma suposta riqueza -viagens, restaurantes, pratos que comemos, famosos com que “convivemos”-. Como consequência, usamos as ferramentas a nosso dispor.
Esse excesso de exposição que vivemos nas redes sociais se deve a que? É alguma carência generalizada?
Para que o ser humano faça algo são necessárias três condições: motivação, meios e oportunidade. A motivação exibicionista sempre existiu. A tecnologia nos fornece hoje meios e oportunidade para satisfazê-la, eis a razão da febre exibicionista que vivemos. Mas a lei da oferta e da procura continua funcionando: excesso de oferta leva à queda dos preços, é assim que as pessoas se “barateiam”.
Alguns especialistas dizem que a internet deixou ou deixará o mundo mais frio e com menos contatos reais. Já outros apostam nas redes sociais como forma de reunir mais amigos fora do virtual, transpondo tudo pro real. Quem tem razão?
Há em economia o que é chamado de “a mão invisível do mercado”. Isto serve para o que fazemos. Enquanto a virtualidade nos satisfizer, ela será usada -é preciso lembrar que nossa vida sexual é principalmente autoerótica-. O fato de haver revistas em quadrinhos não acabou com os livros. A TV não acabou com os estudos, como meu pai nos dizia. A internet não acabará com a reprodução -e portanto o contato interpessoal-.
O brasileiro hoje tem o hábito de criticar e pré-julgar absolutamente tudo, principalmente pela internet, seja nos comentários das notícias online ou nas redes sociais. Quando isso deixa de ser saudável?
O gozo de superioridade que alguém desfruta por criticar quem está em evidência é efêmero, e dá pouca proeminência social -outro poderoso atrator sexual. Pode se transformar em vício? Claro. Há um derivado do sadomasoquismo que chamo o vício fodão-merda, o aprisionamento ao desejo de humilhar o próximo para aliviar inseguranças próprias, e não é só um hábito da internet, os americanos consideram loser -perdedor, ou, em bom português, um merda- como o pior dos insultos muito antes de haver internet.
As críticas contra tudo e todos do Facebook culminaram em 2013 com a onda de protestos, pegando carona na revolta das tarifas de transporte. Como o senhor classifica esse movimento popular criado pelas redes sociais e como podemos equipará-lo aos “caras-pintadas” ou mesmo às “diretas já”? Naquela época havia um único foco, um pensamento, já agora são vários. Há comparação?
Os cara-pintadas do Collor eram adolescentes estimulados por seus professores de história -comunistas, por tradição e por tarefa do Partido- contra a “burguesia” representada pelo presidente mauricinho, e apoiados pela insatisfação geral pelo sequestrador de nossa poupança. As manifestações de junho de 2013 foram muito menos direcionadas, as pessoas estavam vivendo um mal-estar em relação ao governo, mas não sabiam bem definí-lo, por isso “não é só pelos 20 centavos”, mas “não sei bem por que mais”. Eu saí na grande manifestação de mais de um milhão de pessoas na Presidente Vargas -que insistem em dizer que foram 300 mil- com um cartaz: “Inflação de volta? NÃO!” Várias pessoas me pediam para fotografar o cartaz, porque ele traduzia claramente parte de seus incômodos.
Criticar o tempo todo não esconde algum distúrbio? Não é bem parecido com aquela “tia velha e amarga que vê maldade em tudo”?
É preciso entender que quem critica se acha melhor que o criticado. A compulsão crítica pode ser um atenuador de uma insegurança oculta.
Ainda sobre o brasileiro, temos mesmo o tal complexo de inferioridade? Por que?
É engraçado, mas o famoso “complexo de vira-latas” enunciado por Nelson Rodrigues, sempre me pareceu vindo de alguém que, ao enunciá-lo, punha-se superior aos outros. “Isso é coisa mesmo de brasileiro -dos quais “eu não faço parte”. Uma espécie de superioridade desdenhosa.
Deixando a política de lado, por que nos eximimos da culpa e atacamos sempre alguém, seja um empresário ou um governante? Se há lixo na rua (seja no Piscinão de Ramos ou no Leblon) foi porque algum cidadão jogou, mesmo tendo a lixeira ao lado, mas a culpa é da Prefeitura. Se a Prefeitura aplica multa pelo lixo, o prefeito está errado porque é mais um imposto. Não temos cura?
Não há como deixar a política de lado. A política consiste no jogo de poderes entre governantes e governados, entre os próprios governantes e entre os próprios governados. Ela existe porque somos obrigados a viver na Polis (cidade-Estado). Só deixa de existir se optarmos pela vida eremita e solitária. Isto posto, atribuir culpa a alguém mais é um mecanismo de defesa contra o mais incômodo dos sentimentos, o sentimento de culpa. Ele é o maior manipulador político inventado pela humanidade. A mais antiga das instituições em operação -a Igreja Católica- vive de cultivá-la, vendendo a absolvição, cobrando a penitência, e com isso endossando a culpa. Resultado: está aí há 2.000 anos. A cura vem de questionarmos a culpa, e absorvermos o sentimento de responsabilidade como uma virtude. Mas dá trabalho.
A psicanálise seria capaz de explicar a corrupção da população e seu velho jeitinho de tirar vantagem de tudo e também a roubalheira de políticos?
Isso é mais trabalho da psicologia evolucionista que da psicanálise. A natureza humana comporta traços favoráveis e virtuosos, como o altruísmo recíproco, mas também desfavoráveis e viciosos: qualquer coisa que nos leve a vantagens reprodutivas, sucesso sexual e proles mais saudáveis. Se há meios e oportunidade para a corrupção, bem, a motivação de enriquecer sempre estará presente, e a corrupção prevalecerá. O que a inibe é a punição pelas leis, a justiça efetiva e rápida, assim como modelos virtuosos de obter proeminência social. “Fulano é muito respeitado por sua sabedoria”, por exemplo. É o que faço ao responder esta entrevista, escrever livros e participar de programas de TV.
O senhor lançou recentemente o livro “Onde Foi que Eu Acertei”. Afinal, é mais fácil educar os filhos hoje em meio a tanta tecnologia ou isso só piorou as coisas? Alguns pais dizem que muito do que aprenderam com as antigas gerações já não se pode empregar nos dias de hoje, criando mil e um dilemas em casa. Como acertar?
Nunca foi fácil educar filhos, nem a mãe natureza está interessada nisso -ela só se interessa por quantidade reprodutiva, não por nossa felicidade-. Há pais, no entanto, que se dispõem a criar seus filhos da melhor maneira possível. Alguns pensam que isso quer dizer “prepará-los para Harvard e para o mercado de capitais”. Outros visam entender do que seus filhos são prazerosamente capazes e estimulá-los para isso. É tarefa árdua e cara, visto que os governos não se interessam por populações educadas e questionadoras, eles se interessam em permanecer no poder. Por isso somos tri-tributados: nosso trabalho paga impostos que não produzem educação satisfatória, daí buscamos a particular. A particular não é lá essas coisas, por isso pagamos professores particulares. O mesmo se dá com a saúde -pública inoperante; planos pagos vagabundos; médicos particulares caros-. Quanto o que vale preservar de antigas gerações, valores éticos, meritocracia, busca de excelência, isso não sai de moda.
Palmadas nem pensar?
Há um conceito na justiça que é muito esquecido. A autoridade deve ser baseada no saber e no respeito que ele desperta. Mas ela não pode esquecer que, em últimas instâncias, se baseia nas forças armadas, em ser mais forte que o subordinado. Ou, nas palavras cômicas de um cliente, “quando Freud não explica, Lampião entra em ação”. O mesmo se passa no âmbito familiar. Quando as crianças são muito pequenas, não há como não ser um déspota esclarecido que sabe o que é melhor para elas, e por elas decide. À medida em que crescem, sua capacidade de compreensão aumenta, e o déspota começa a embasar suas ordens no saber. Em vez de dizer “Desce dessa janela já!”, pode dizer “Perigo! Dodói grande!”, e a criança obedecerá e entenderá. Mas há momentos em que a lembrança de que somos mais fortes se faz necessária, e a força física tem que ser mostrada. Para isso serve a palmada: ruidosa -sobretudo se acompanhada de efeitos sonoros vocais-, assustadora, e necessariamente sem dano físico. O senso comum ouve palmada como espancamento e isso é apenas mais uma de suas tolices.
Numa entrevista recente o senhor disse que o segredo da relação conjugal é a amizade. Correto? Seria o mesmo que cumplicidade?
Nunca uso o termo “cumplicidade” porque ele alude a associação para o crime. Prefiro “companheirismo”. Eis porque o nome de meu livro é “O amor companheiro”. Este é o derivado mais desejável da paixão, que é um estado de insanidade irrealista com prazo de validade em torno de três anos. Os outros são a indiferença -que leva à separação-, e o sadomasoquismo, quando o casal se sente aprisionado, e se estabelece uma relação de carcereiro e encarcerado -com papéis que se revezam de um para o outro-, e que pode produzir bodas de ouro. Infelizmente, o sadomasoquismo produz mais bodas de ouro do que o amor…
O amor também mudou ao longo das décadas ou foi apenas a paixão que se tornou mais instantânea?
É preciso contemplar que um dos desdobramentos do capitalismo foi trazer afluência a um número cada vez maior de pessoas. Em nenhum tempo da humanidade tantas pessoas tiveram acesso a conforto e lazer como hoje. Nabucodonosor, com toda sua riqueza, vivia de maneira mais desconfortável que um morador de favela da classe média baixa. Como resultado, temos o fenômeno descrito nas palavras cruéis de Nelson Rodrigues: “Os imbecis perderam a modéstia”. Há o lado favorável de saber que a miséria e as condições subumanas de sobrevivência estão cada vez mais raras, a ponto de o fotógrafo Sebastião Salgado ter que ir para a África sub-saariana para registrar crianças esqueléticas. O lado triste é a perda da sofisticação e do glamour que tínhamos nos livros antigos e nos filmes de Hollywood, e o ganho de peso -a epidemia de obesidade-, a compulsão pelo imediatismo e a vulgarização das relações que o imediatismo rastaquera traz.
Existe um movimento que aposta na retomada de antigos hábitos na contramão da tecnologia de hoje, assim como outro segmento que lançou o “slow life” como forma de desacelerar nossa rotina tentando evitar o estresse. O senhor acredita nisso? O que podemos esperar do futuro levando-se em conta o pensamento da sociedade atual como um todo?
A “mão invisível do mercado” na economia psíquica da busca da felicidade o dirá. Fico feliz que haja espaço para a pluralidade de propostas de bem-viver. Como você vê, eu mesmo me empenho numa causa francamente diversa do senso comum, e minoritária. Mas luto o bom combate, e isso me deixa feliz.
entrevista e texto Renato Lima
foto João Clávio/Divulgação