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Post: Um Armazém de amigos, não de fregueses!

Um Armazém de amigos, não de fregueses!

Armazém Popular, em Salto; local foi destruído por um incêndio

Era quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014. Doze dias se passaram desde o fatídico evento ocorrido na esquina das ruas Monsenhor Couto e Nove de Julho, em Salto, onde o fogo parecia destruir uma história centenária, de tantas conquistas e muita memória. Felizmente não houve vítimas fatais e nem mesmo a senhora vizinha, a qual era tia do proprietário do Armazém Popular, e que teve sua casa também abalada, não estava lá. Sendo assim, de todas as perdas, a mais sensível ficou no coração. Uma emoção que enche os olhos de lágrimas de Bertinho ao começar a ser contada.

Roberto Vladimir Ferrari, para os amigos simplesmente Bertinho, nasceu em 1943 e desde os 13 anos trabalhava no Armazém Popular, quando em 1956 foi adquirido por seu pai e então recebeu esse nome. Dezesseis anos depois veio a assumir sozinho o local, no qual viveu 58 anos de sua existência, hoje prestes a completar 71 de vida. Foram décadas de muita história, visitas ilustres, clientes fixos – mas que ele prefere chamar de amigos -, ponto de encontro de políticos antigos e, principalmente, muita cordialidade, respeito e honestidade.

 Lembranças

O Armazém era a vida de Bertinho. Era lá que os amigos se reuniam para jogar conversa fora e beber cerveja. No sábado, inclusive, após o expediente, ele baixava as portas do comércio e se juntava a eles, aproveitando a folga que se iniciava. Guarda em sua memória a passagem de um político famoso na época, o deputado federal Ranieri Mazzilli, que veio inclusive a ocupar o cargo de presidente interino da República. Mazzilli chegou a frequentar a casa dos pais de Bertinho, lembrança que faz brotar um belo sorriso no rosto do comerciante.

Encheu-se de orgulho ao contar que, em certa ocasião, o governador Geraldo Alckmin esteve em Salto, em campanha, e o então prefeito Geraldo Garcia, o convidou para conhecer o “velho Armazém de Salto”. Rapidamente, Bertinho montou uma mesa de café, com diversos quitutes e recebeu o político famoso. “Alckmin deve ter gostado, pois em 26 de dezembro do último ano de mandato de Geraldo Garcia, ele voltou a Salto e na oportunidade recebi um telefonema do prefeito, que dizia: ‘Bertinho, o governador estará aqui dia 26 e pediu para retornar ao Velho Armazém. Posso levá-lo?’ Naquele dia achei que ia me acontecer algo, tamanha emoção sentida. Eu me senti tão honrado que corri para preparar uma mesa ainda melhor, com tudo que eu pudesse oferecer a ele. E ele voltou!”.

 Bom atendimento: o segredo do sucesso

O que até então não imaginava, era que as pessoas que voltavam ao seu Armazém não o faziam por necessidade, mas sim por vontade! Vontade de ser bem atendido, de jogar conversa fora, de se sentir importante, de ver seu sorriso no rosto e ter sua mão estendida. Era isso que as pessoas mais admiravam. Mesmo com toda a modernidade, a qual Bertinho mesmo diz ser difícil de acompanhar, o Armazém Popular conseguiu se manter à frente de qualquer outro estabelecimento comercial da cidade. Sua permanência, no entanto, não se deve às boas recordações do passado e a benevolência dos cidadãos saltenses, mas sim ao atendimento com o qual sempre se preocupou.

O Armazém Popular manteve-se vivo, e gozando de boa saúde, por conta da dedicação de seu líder, sempre à frente de seu negócio. Uma vez por semana, durante todos esses anos, reunia-se com seus funcionários para falar sobre atendimento, a importância do respeito, cordialidade e sobre tudo, da honestidade.

Sentia-se tão incomodado quando era mal atendido em algum comércio, que procurava ser o oposto em seu estabelecimento. E isso era sensivelmente sentido por todos os “amigos” que passavam por lá. O músico saltense José Tatângelo, numa conversa, comentou que, “nestes tempos modernos, o principal produto do Armazém é o ‘tempo’! Não existe outro estabelecimento onde você entra, é atendido rapidamente (e com cortesia), paga e vai embora. No Armazém do Ferrari você não precisa de estacionamento, carrinhos, balanças e etc. Nos nossos dias tempo é dinheiro! As pessoas estão todas estressadas e sempre com pressa. Lá no Ferrari é tudo muito rápido e sempre sobra um tempinho para um bate papo”.

Detalhe do Armazém, na esquina da rua Monsenhor Couto; ao fundo, a Matriz Nossa Senhora do Monte Serrat

 O legado

E é esse papo que mais tem feito falta a Bertinho, apesar dos amigos não deixarem a saudade tomar conta. Em pouco mais de uma hora que durou a conversa com ele, três amigos vieram cumprimentá-lo e desejar dias melhores. “Fiquei muito emocionado com a quantidade de pessoas que se colocaram ao meu lado e se disponibilizaram a ajudar. Nunca imaginei ser tão querido”, revela.

Um desses amigos, inclusive, chegou para pagar uma conta que tinha ficado em aberto e que, com o fogo, teve os comprovantes queimados. “Como tudo foi queimado, todos os documentos – tanto administrativos quanto históricos -, nenhuma caderneta de pagamento foi salva. Com isso, são as pessoas que lembram o quanto deviam e vem me pagar. E eu anoto todos os nomes no meu livrinho de pessoas que valem ouro, pois elas representam a honestidade que ainda existe ao nosso redor.”

Um dos maiores legados deixados pelo Armazém Popular são os funcionários. Pessoas que o comerciante tinha como verdadeiros filhos e que treinava para serem grandes profissionais. “Orgulho-me quando vejo ex-funcionários em posição de gerência em lojas de grande porte. É sinal de que os valores que passei, com o primeiro emprego da vida deles, deram certo. Orgulho-me também de estar conseguindo recolocar todos os meus funcionários que ficaram sem emprego, com o incidente. Lugares como a Padaria Aliança e a Barra, a Casa de Parafusos, me procuraram para agregar alguns deles por considerar que eles já estão bem treinados”.

 O renascimento

Trabalhando com dois de seus antigos funcionários nos fundos da loja da esposa, ao lado do antigo Armazém, Bertinho disse estar agora cuidando da reconstrução do local. “Tenho muito trabalho administrativo a fazer. Muita burocracia ainda, antes de pensar no que será feito com o espaço”.

Kátia Auvray, historiadora, escreveu um texto recentemente contando a história do local e comenta sobre “suas altas prateleiras de pinho-de-riga, típicas do comércio das primeiras décadas do século XX, tudo foi destruído pelas chamas”. E é exatamente essa prateleira que mais tem feito Bertinho refletir. “Ela tinha mais de dez metros de altura e acompanhava toda a extensão do Armazém, era majestosa, foi feita por italianos no início do século passado e até hoje não tinha um caruncho sequer. Não imagino o Armazém Popular sem essas prateleiras”. O que quer que venha abrigar o local, uma coisa é certa. “Vou reconstruir exatamente como era no passado. Com as oito portas que ele tinha. Não imagino essa esquina sem essa visão”.

O fogo pode ter destruído paredes, produtos e documentos, mas a história e as lembranças do Armazém Popular de Salto jamais serão destruídas. Ela está perpetuada na alma e nos corações de tantos saltenses, e da família Ferrari.

texto: Laise Corti

fotos: Acervo de Elton Frias Zanoni

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