Pequenos gestos podem fazer uma grande diferença
Nem só os contos de fada começam com “Era uma vez”. Essa reportagem, que não é nenhuma fantasia, também.
Era uma vez dois meninos de no máximo 13 anos. Um “emprestava” o seu ombro ao outro, que com essa ajuda, mais a sua bengala, desbravava o Centro de uma cidade movimentada.
Quem se deparava com a cena, via dois meninos alegres e brincalhões dando uma lição de cidadania e gentileza aos mais velhos. Isso porque, o que enxergava, tratava a deficiência de seu amigo com naturalidade e não se importava em demorar cinco minutos a mais para chegar em casa.
Essa cena acontece todos os dias quando os dois amigos saem da escola rumo a casa, e no trajeto passam pelo Centro de Campinas na famosa “hora do rush”. Pode ser que muitos que cruzam com eles, nem se dão ao trabalho de desviar e, até, de reparar no gesto nobre.“O indivíduo que é gentil, que tem isso de berço, não consegue, por mais que esteja ocupado ou na correria, deixar de ser gentil. Mesmo se ele estiver atrasado para um compromisso vai deixar a senhora atravessar a rua ou segurar o elevador para quem está chegando”, fala a terapeuta e especialista em comportamento Fátima Repanas.
Ver a ausência de gentileza no dia-a-dia é tão comum quanto atravessar a rua. Para quem pega ônibus é fácil analisar. Quantas vezes um idoso vai em pé, enquanto um jovem viaja sentado? Mas a gentileza não está ligada somente a fazer o bem ao outro. Recolher as fezes do cachorro da rua também é considerado como gentileza. Utilizar somente as vagas comuns em estacionamentos públicos, mesmo que para isso seja necessário esperar por essa enquanto as reservadas continuam vagas, também é. “Percebemos a importância de ressaltar aos clientes atitudes gentis do cotidiano, estimulando o bom relacionamento das pessoas e na rotina diária de cada um, seja no trabalho ou em casa. Entre os exemplos, retirar a bandeja da mesa após a refeição, deixando o espaço livre para o próximo cliente; não jogar lixo ou pisar nos jardins, são algumas pequenas coisas que fazem a diferença”, fala Edgar Silveira, diretor de marketing do Plaza Shopping Itu, explicando sobre a campanha “Pratique Gentileza”, que o mall criou no início de março.
Se dar‘bom dia’, segurar a porta do elevador e ter paciênciatornaram-se atitudes quase em extinção, a advogada aposentada Carmen Elisabeth Alvarez Pereira, nos dá uma ponta de esperança. Diagnosticada com Poliomielite quando ainda era criança, a profissional que na adolescência usava bengalas e hoje anda com cadeiras de rodas, sempre dependeu da gentileza das pessoas para poder se locomover com mais facilidade. Seja no carro que sempre chegou a sua porta levado por manobristas comprometidos, ou em colegas que para não a fazerem subir escadas, desciam a papelada de seus processos para o térreo. “As pessoas se sentem confortáveis em me ajudar, e auxiliam de forma espontânea”, diz, mas reforça: “ainda falta muito para que o deficiente tenha maior amplitude de ir e vir, e nisso posso destacar a atenção dos órgãos públicos e da população em geral”, completa.
Gentileza versus mundo online
No Facebook é comum vermos pessoas engajadas e politizadas sempre prontas a defenderem uma causa. Seja no pedido de renúncia de um ministro ou na condenação ao preconceito homossexual. No mundo real a história é diferente. Se existe uma passeata que defende os direitos dos animais, metade das pessoas que apoia a causa na internet sai de suas casas para acompanhar o movimento. O fato é que com a tecnologia ao alcance das mãos e em qualquer hora, o ser humano tornou-se on nas redes sociais e off na vida real.
“Acho que isso é muito individual. Podemos estar nas redes sociais e sermos úteis, nos engajar em causas nobres, como também podemos escolher ficar olhando apenas para o nosso umbigo, passando o tempo todo olhando para o nosso perfil, e ainda podemos optar viver em função dos perfis alheios”, defende Fatima.
A correria e o semelhante
A cada vez que o mundo fica mais globalizado, o homem fica sem tempo. Jornada dupla, congestionamentos, celulares, informações “a rodo”, necessidade constante de aperfeiçoamento, e as 24 horas do dia começam a ser pouco. Com isso, o outro, nosso semelhante, é mais um, e não merecedor das nossas preocupações.
“Nos dias atuais, estamosnos ‘escutando’ cada vez menos. Não temos tempo, nem paciência, para apenas conversar, ouvir realmente nosso semelhante. Arranjamos tempo para reparar nas casas, nos carros ou nas roupas que as pessoas usam, mas sentar e ouvir o que a pessoa tem a dizer está ficando cada vez mais raro. A área humana em geral, tanto a psicologia quanto a religião, por exemplo, está buscando cada vez mais reparar essa situação por meio das crenças e do autoconhecimento. Há uma busca para que não haja um total afastamento do semelhante e para que as pessoas procurem se conhecer, se ouvir. Uma vez que você teve um encontro com você mesmo, ter um encontro com o outro se torna mais fácil”, acrescenta a terapeuta.
Campanha para a gentileza
E com todos esses contras que minam a gentileza nata, o Plaza Shopping Itu inova com uma campanha que estimula lojistas e consumidores a serem mais gentis, independentemente do local e ocasião. “A campanha ‘Pratique Gentileza’ permeará ações durante todo o ano e estará sempre presente no Plaza. Nos mais diversos espaços do shopping, a comunicação da campanha destaca dicas aos clientes, como respeitar as vagas especiais ou economizar água, convidando a ‘Passar essa ideia para frente’”, completa Edgar Silveira.
Em fevereiro, antes do lançamento da campanha aos clientes, o shopping buscou cativar primeiro os lojistas e funcionários, com uma palestra sob o tema “Atendimento ao Cliente: Gentileza”.De acordo com o diretor de marketing, a ação vem funcionando, tanto que na Praça de Alimentação já se torna difícil ver pratos “esquecidos” nas mesas.
Fazer o bem enobrece, enriquece o corpo e o espírito e proporciona uma sensação de dever cumprido. Fazer o bem chega até a corar, por isso, não pense duas vezes em ser gentil!
“Amor palavra que liberta, já dizia o profeta”
O título dessa matéria, “Gentileza gera gentileza”, não é invenção da repórter ou uma simples frase que combina. É uma expressão inventada por José Datrino, paulista do Interior do Estado, mais conhecido como Profeta Gentileza.
O homem pai de cinco filhos abandonou a vida material pela espiritual, pregando palavras de amor pela capital fluminense, onde se instalou e fez história, e também por outros Estados. Em meados dos anos 1970 era comum encontrar sua figura barbuda, de túnica branca cheia de apliques e mastro com palavras de amor, andando pela cidade.
Mas foi em 1980 que começou a chamar mais atenção. Nessa época o Profeta Gentileza começou a pintar as 56 pilastras do viaduto da Avenida Brasil, numa extensão de aproximadamente 1,5km, com suas frases estudadas até os dias atuais. Uma de suas marcas mais latentes são as estrelas no início e na finalização de frases, e outros símbolos como setas, acentos, gaivotas e a bandeira do Brasil.
Devido ao seu legado, a cantora Marisa Monte eternizou Gentileza em versos de música:
“Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
A palavra no muro
Ficou coberta de tinta
Nós que passamos apressados
Pelas ruas da cidade
Merecemos ler as letras
E as palavras de Gentileza
Por isso eu pergunto
A vocês no mundo
Se é mais inteligente
O livrou ou a sabedoria
O mundo é uma escola
A vida é o circo
Amor palavra que liberta
Já dizia o profeta”.
A cantora relembrou as artes de Gentileza pintadas de cinza logo após a sua morte, em 1996, aos 79 anos, homenageando o artista do povo, que preferiu distribuir sorrisos e gentilezas a levar uma vida de riqueza. Afinal, “é mais fácil um burro criar asas e avoar do que um centavo de alguém aceitar”, já dizia o profeta!
texto: Yara Alvarez
fotos: Fotolia e Arquivo