Em entrevista exclusiva para a Revista Regional, Alexandre Nero oferece um olhar íntimo sobre a complexidade de seus papéis e a autenticidade que busca em cada performance. O ator explica como a comédia e o drama são faces da mesma moeda, essencialmente entrelaçadas na vida diária. “Por mais trágica que uma situação seja, ela tem um lado cômico e vice-versa”, ele compartilha, ressaltando a autenticidade com que esses elementos se manifestam tanto na arte quanto no cotidiano. No universo da novela “No Rancho Fundo”, da TV Globo, o ator encontra uma particular afinidade com seu personagem, Tico Leonel, com quem desafia estereótipos enraizados: “Eu vejo o Tico de uma forma completamente diferente: não como alguém burro, mas como um homem incrivelmente ingênuo – uma qualidade muitas vezes ignorada em nossa sociedade”. Esta reflexão do ator oferece um vislumbre de sua capacidade de infundir humanidade e complexidade em seus personagens, convidando o público a olhar além dos clichês. Ademais, ele pontua o papel essencial das novelas como veículos de transformação social, especialmente na promoção da representação feminina. Nero valoriza a interação com o público, considerando-a crucial para a ressonância de seu trabalho: “Amo fazer o que faço porque é para as pessoas! Se elas não estão respondendo, algo precisa mudar”, confessa, sublinhando a importância de estabelecer uma conexão emocional profunda em cada projeto. Refletindo sobre sua própria carreira, o ator fala sobre o privilégio de poder escolher papéis que ressonam com suas paixões: “Hoje, eu desfruto de um privilégio que me permite explorar amplamente meus interesses artísticos”, diz ele, reconhecendo a liberdade conquistada através de anos de trabalho dedicado, que lhe permite desde atuar em produções grandiosas até criar músicas que tocam a alma. Cada palavra de Nero é uma janela para sua alma de artista, um homem que não só representa, mas vive e respira seus personagens, transmitindo uma paixão pela arte de contar histórias capazes de refletir e moldar a realidade.
REVISTA REGIONAL: Numa entrevista recente a um portal de notícias, você fez uma reflexão sobre a experiência de interpretar Tico Leonel em “No Rancho Fundo”, que transita entre a comédia e o drama. Como você acha que essa dualidade influencia o desenvolvimento da sua atuação e a conexão com o público?
ALEXANDRE NERO: A dualidade comédia e drama, para mim, deve existir em qualquer que seja o personagem – porque comédia e drama coexistem na vida real, no cotidiano. Por mais trágica que uma situação seja, ela tem um lado cômico e vice-versa. Um exemplo é quando acontece uma experiência triste ou assustadora na nossa vida em determinado momento que, depois de alguns anos e observando aquilo à distância, pode lhe arrancar algumas risadas. Entendo a dramaturgia assim. Comédia e drama estão sempre interligados. Claro que, dependendo da situação, você sublinha um pouco mais para um lado ou para o outro. No caso do Tico Leonel, a tinta tem sido mais forte no humor (digo “tem sido” porque em novela nunca sabemos o que o autor nos reserva pro futuro), mas ele tem momentos lindos no drama. Já sobre a conexão com o público, creio que o primeiro passo deve ser gostar do que se está fazendo. Eu amo fazer novela e adoro fazer teatro popular. E novela é o que mais temos de popular no audiovisual. ‘No Rancho Fundo’, sem dúvida, dos trabalhos que fiz na TV, é o que mais bebe no teatro popular inserido na teledramaturgia. Acredito que isso tenha feito com que as pessoas se identificassem rapidamente com a vida e o tom das personagens, e compreendido como um grande entretenimento com o mais alto requinte, sem parecer esnobe, sem querer mostrar eruditismo, onde há pessoas verdadeiramente se divertindo e se emocionando buscando fazer com que quem assista sinta o mesmo.
Algo curioso é que Tico Leonel teve inspiração no personagem de George Clooney, do filme “E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?”. Como você desenvolve essas questões físicas e trejeitos? Você já comentou que, às vezes, não é intencional, mas acontece de maneira natural. Com o Tico, por ser ingênuo e até submisso aos mandos e desmandos de Zefa (Andrea Beltrão), o que há de Nero no personagem?
Todo personagem que eu faço há “Nero”. Não acredito em personagens em que não há o próprio ator, não estou me referindo apenas de forma física, mas memória e estudo. É sempre a própria pessoa que está ali, em diversas personalidades, e uma, ou algumas delas, são destacadas, dependendo da situação que lhe convém e quer a ampliar. Sobre a inspiração, a caracterização de George Clooney foi uma das ideias nesse filme que citou, sem dúvida, por causa do bigode. Mas ele, nesse trabalho, não perde a beleza, continua um homem altivo, bonito e não é “derrubado” fisicamente, como Seu Tico, que anda encurvado, demonstra cansaço pelo trabalho no campo de uma vida toda, e ainda com um timbre de voz estridente e desafinado. Não há sexy appeal que se sustente (risos). Penso que Seu Tico Leonel está mais próximo de um Mazzaropi, Carlitos ou Didi Mocó. Certa “graça melancólica”. Não vejo o personagem como submisso, para mim ele é respeitoso com Zefa Leonel. Acho que ele é um homem que sabe que quem comanda aquela família é a esposa. Não concordo com o submisso porque ele não acata ordens, ele discute, dá opiniões, conselhos e várias vezes mudou os pensamentos da mulher. Mas ele é um homem tímido, ingênuo e quieto. Isso nem sempre acontece de forma natural. A gente busca caminhos que achamos interessantes. Por exemplo, aquela voz aguda e um pouco anasalada do Seu Tico começou a aparecer nas leituras e a gente achou divertido. Em uma tentativa de fugir do comum, colocar uma tinta mais forte nos personagens ajuda a reforçar a ideia dos arquétipos e que as pessoas identifiquem mais claramente quem era quem ali. A ideia do teatro popular é um pouco essa em que você, à primeira vista, já entende quem é o mocinho, o vilão, o tolo, a heroína e aí por diante. Eu queria voltar nessa ideia do submisso porque me chamou muito a atenção essa pergunta. Quando o homem não é o macho alfa da casa ele é mesmo interpretado como submisso, você tem razão. Tenho sentido muito isso nos retornos das ruas. Ainda mais eu, que na maior parte das vezes, fiz personagens fortes e “machões”, isso somado ao estereótipo do homem simples e nordestino que quase sempre é tido como bruto, agressivo e tudo mais. Então esse é um arquétipo que o Mario [Teixeira] quis subverter no caso do Seu Tico, que é o homem sensível, delicado, que chora, o homem do afeto na casa. Enquanto a durona é a Zefa Leonel. Isso faz com que as pessoas achem que Seu Tico é um “banana”. Eu leio o personagem de uma forma completamente diferente: eu não acho ele burro, está longe disso, é um homem muito ingênuo – que é uma coisa esquecida na nossa sociedade, afinal “o mundo é dos espertos” – e muito delicado naquele universo, o que é muito difícil. E aí se torna esse homem, entre aspas, submisso. Queria destacar isso. Acho muito legal.
Considerando a personalidade de Zefa como uma mulher sertaneja, inteligente, racional e fatalista, que não apenas é o cérebro da família, mas também defende seus argumentos com firmeza quando necessário, como você vê a representação de mulheres fortes e assertivas em ambientes tradicionalmente masculinos contribuindo para o debate e avanço do feminismo?
Acho importante, fundamental. A novela é, sim, um ponto de discussão da sociedade para todos os assuntos que possamos debater, aprender e avançar. O protagonismo da mulher em novela tem vindo já há um bom tempo. Se existe uma coisa que tem tratado isso com seriedade é a teledramaturgia – das novelas, especialmente –, onde a mulher tem sido protagonista e também antagonista há um bocado de tempo. Isso é bastante positivo e, sem dúvida, fortalece o debate.
São muitos os elogios ao seu personagem Tico. Enquanto ator, é importante receber este reconhecimento porque, de certa forma, tem o seu trabalho reconhecido, ou não faz diferença?
Faz total diferença. Eu estou atuando para alguém. Ou, no caso, para muitos “alguéns”. Se as pessoas não estão gostando, isso faz diferença. Amo fazer o que faço porque eu faço para as pessoas! Se elas não estão gostando, algo não está acontecendo. Então, o Seu Tico Leonel é, fato, um personagem de sucesso que há muitos anos eu não tinha, assim, tão grande, tão forte, e é uma novela das seis. Desde o Comendador [novela ‘Império’, 2014] eu não tenho um retorno tão grande nas ruas com as pessoas me chamando de Tico Leonel – guardadas as devidas proporções porque o Comendador não foi um sucesso, foi um fenômeno, um negócio completamente diferente de qualquer parâmetro, que virou fantasia de Carnaval, um negócio surreal. Nas ruas, a maioria sempre me chamou de Comendador, de vez em quando me chamam de Romero Rômulo [‘A Regra do Jogo’, 2015], Baltazar [‘Fina Estampa’, 2011], um ou outro, aqui e ali, mas o Seu Tico Leonel, depois do Comendador, foi um dos primeiros em que eu sinto muito forte a alegria, as pessoas com o sorriso no rosto chegando até mim. E isso é muito importante e recompensador. Eu estou muito feliz em fazer, muito feliz com tudo que está acontecendo no trabalho e com o retorno das pessoas.
Considerando a distinção de Hannah Arendt entre “trabalho”, associado à sobrevivência e ao que fazemos para comprar o pão de cada dia, e “obra”, que tem a ver com construir e deixar um legado – mesmo que não seja notável, mas que faça sentido – como essa perspectiva pode influenciar a sua visão de carreira e escolhas profissionais no mundo contemporâneo?
Para mim, isso tem a ver com privilégio. Eu, que vim da “escola da sobrevivência”, não tive a opção de escolher fazer música ou teatro apenas para deixar um legado. Precisava comer e morar, literalmente. E quando se está nesse lugar, você precisa trabalhar, não se escolhe trabalho. Que tipo de peça você vai fazer? A que aparecer. Hoje estou em um momento de privilégio em que consigo ter um leque maior para escolhas profissionais. No meu caso, consegui vez ou outra conciliar “trabalho” com “obra”. Tive a sorte de nunca me faltar trabalho, mesmo que precário. Desde o início, fazia os “trabalhos”, tocando em bares músicas conhecidas do público e espetáculos populares para sobreviver, e, paralelo a isso, meu trabalho autoral, minha “obra” de compositor, que pouca gente escuta ou compra e peças alternativas, com dois ou três gatos-pingados na plateia, mas que foram, e são, de suma importância para o exercício do artista. Eu acho que dá para conciliar “trabalho”, aquilo que paga as contas, com aquele tijolinho que você coloca na sua “obra” pessoal, que é aquilo que você tem como “seu”, autoral, e que não necessariamente precise contar com esse retorno financeiro ou resposta do público. Dá para combinar essas duas coisas, e ambas dão pra sentir prazer. Eu sinto.
Levando em consideração alguns vilões que marcaram a dramaturgia, como Marco Aurélio (Vale Tudo), Felipe Barreto (O Dono do Mundo) e Horácio Cortez (Insensato Coração), existe algum personagem que você gostaria de reviver na TV, já que estamos numa onda de remakes de novelas? Na verdade, eu perguntei sobre vilões porque normalmente são os mais almejados, mas fique à vontade para falar sobre outros de sua preferência.
Os vilões são sempre muito apetitosos porque eles podem tudo [risos]! E poder tudo, ou quase tudo, em um personagem é uma delícia, uma diversão, um deslumbre. É experimentar a liberdade absoluta sem limites. Fazer remake é sempre muito perigoso, porque as comparações são inevitáveis, mas também é muito desafiador, e que artista não gosta de ser desafiado? Inclusive, ‘Vale Tudo’ é uma novela que marcou muito. Eu acho que a Odete Roitman é, sem dúvida, a personagem que assusta mais. Mas dos masculinos existem personagens que dão mais medo de fazer e que me marcaram muito mais, como Sinhozinho Malta [‘Roque Santeiro’, 1985], uma coisa brilhante do Seu Lima Duarte; o Sassá Mutema [‘O Salvador da Pátria’, 1989]; o Zeca Diabo [‘O Bem-Amado’, 1973]. O que o Seu Lima Duarte fez na teledramaturgia é um negócio sem precedentes! Se o Seu Lima Duarte fosse americano já tinha ganhado uns quatro Oscars. É impressionante o que aquele homem é de brilhante. Então, eu acho que tem muitos… o Odorico Paraguaçu [‘O Bem-Amado’, 1973], do Paulo Gracindo, por exemplo. São personagens que eu adoraria fazer, mas eu não sei se eu teria coragem [risos], porque é um negócio tão gigantesco o que aqueles atores fizeram que dá medo, aquilo ali dá medo de fazer! São personagens e atores numa junção atômica!
Muitos artistas argumentam que a fama vem acompanhada tanto de vantagens quanto de desvantagens. Considerando essa dualidade, como avalia o impacto desses aspectos em sua vida pessoal e profissional? De que maneira você lida com os desafios e pressões que o sucesso impõe?
Fiz há uns anos um espetáculo que falava sobre “sucesso” e “fracasso”, que é algo bastante subjetivo e pessoal. Mas tratando de maneira mais popular o assunto, acredito ser importante diferenciar bruscamente fama de sucesso. Fama é algo vazio e não necessariamente bom. Qualquer um pode ser famoso. Um assassino pode ficar famoso da noite pro dia. Sucesso não. Sucesso tem estofo e alicerce. Ninguém tem sucesso de uma hora pra outra. Pra mim, especificamente por ser uma pessoa muito tímida e reclusa, o mais complicado sempre foi a mistura da vida pessoal com a profissional, a exposição pública, que é inerente ao meu ofício. Gosto muito da frase do psicanalista inglês Winnicot, que diz “Artistas são pessoas motivadas pela tensão entre o desejo de se comunicar e o desejo de se esconder”. Entendo ser um paradoxo e é assim que sou. Pra tudo tenho uma coragem vulcânica, mas sempre atrelada a um receio hercúleo, e vice-versa. Alguns anos obtendo algum sucesso e fama me fizeram dar muitos tropeços, e eles me ensinaram bastante. Meus filhos hoje são parte fundamental para me aterrar. Não há fama que perdure quando um filho grita: “Pai, acabei, vem me limpar!?” (risos), apesar de considerar isso definitivamente um grande sucesso.
Em 2022, você lançou “Quarto, Suítes, Alguns Cômodos e Outros Nem Tanto”, com participações de Milton Nascimento e Elza Soares. Qual o significado deste álbum pra você, ainda mais após a partida da Elza? E, para complementar, existe algum projeto musical para ser lançado nos próximos meses ou anos?
O álbum é daqueles projetos que entra no hall das “obras”. Daquelas coisas que fazemos para deixar o rastro. Obras autorais servem para quando as pessoas quiserem mesmo saber o que fiz artisticamente é ali que irão achar. Troquei conteúdo de Instagram por um álbum de música que ninguém escuta (risos). Preferi assim! Milton, Elza e também Aldir Blanc, do qual tenho uma parceria no disco, é tal qual a materialização do sonho do menino agregado a um grande orgulho profissional. Estar ao lado de artistas de potência mundial e referência minha desde criança, assim como tem acontecido quase que diariamente ao fazer novelas, filmes, teatro, viver da arte há mais de 30 anos é a concretude das dezenas de coisas que podemos listar como “sucesso”. A música está sempre ligada a tudo que faço. Não tenho nada exclusivamente pensada para ela, mas está e sempre estará em conexão à minha “obra”.
Neste momento, você está dedicado à novela, mas após sua finalização, planeja se envolver com algum projeto no cinema ou teatro? Ou a ideia é descansar e curtir a família em longas férias?
Férias sempre é bom, mas como um bom ansioso, não pode durar muito que começo a enlouquecer e endoidar quem está ao meu redor. Penso em descansar um pouco, mas logo já terei algo a fazer. Até a data dessa entrevista nada confirmado ou em mente, mas logo, logo, arrumo “sarna pra me coçar” (risos).
entrevista e texto: Ester Jacopetti
ENSAIO:
Fotos: Priscila Prade
Styling: Karen Brusttolin
Make: Rico Tavares