A partir de relatos pessoais sobre a própria história de vida, a fundadora da Comunidade Zen-Budista Zendo Brasil conta em seu novo livro como tem lidado com o processo do envelhecimento
“Em cada instante nascemos e morremos bilhões de vezes. Já não sou quem fui há um instante. Li um livro, ouvi um pensamento diferente dos meus e morri para quem eu era. Renasci para um novo eu, que também não dura mais do que alguns milionésimos de segundo. Logo já sou outra e nunca a mesma”. Este é um trecho do novo livro da Monja Coen, “Em cada instante nascemos e morremos bilhões de vezes”, publicado pelo selo Academia, da Editora Planeta, que acaba de ser lançado no país.
Aos 77 anos e vivenciando a própria experiência de envelhecer, ela reflete sobre questões sensíveis que permeiam essa fase, compartilhando suas histórias de vida e seus questionamentos. Em meio a dúvidas e incertezas do ser humano, Monja Coen entende que tudo e todos estão envelhecendo juntos, já que o processo de envelhecer inicia logo no momento do nascimento. Para ela, esta é uma jornada única, que começa muito antes da existência do ser humano, recomeça a cada despertar e cujo fim é impossível determinar. Monja Coen explica que o envelhecimento não é um processo fixo, ele acompanha o passar do tempo que compõe cada pessoa, permitindo que elas evoluam e se transformem.
“No espelho acompanho as rugas se formando, os cabelos clareando, a vista enfraquecendo, os músculos afrouxando. Ainda que faça exercícios, tente fazer regimes, raspar os cabelos e os pelos que insistem em crescer no queixo, é diferente hoje. Na minha juventude não era assim. Agora tudo se transforma sem cessar: o corpo, a mente, o espírito. A vontade de viver jovem para sempre se perde, mas sem perder com ela a vontade de viver e ser. No espelho, vejo ainda a mãe idosa e jovem, a criança e a adolescente, a jornalista, a feminista, a monja e toda uma linhagem de Budas ancestrais. Sou em todas e todas são em mim.”, escreve.
Entrevistada pela Regional em outras duas ocasiões ao longo dos 21 anos da publicação, Monja Coen Roshi é a primaz fundadora da Comunidade Zen-Budista Zendo Brasil, criada em 2001. Teve seu primeiro contato com o zen-budismo no Zen Center de Los Angeles (EUA), onde fez os votos monásticos em 1983. Residiu por oito anos no Mosteiro Feminino de Nagoia, no Japão, onde se graduou como monja especial, habilitada a ministrar aulas de budismo para monges e leigos. Retornou ao Brasil, em 1995, como missionária da tradição Sōtō Zenshu. Ministra cursos e palestras sempre muito concorridos. Apresentou a série “Caminho Zen”, pelo canal GNT, e agora apresenta o programa semanal “Momento Zen” na Rádio Vibe Mundial e tem o podcast “Despertar Zen”. Autora best-seller, publicou diversos títulos no Brasil, como “Viva Zen, “Sempre Zen”, ”Palavras do Darma”, “A Sabedoria da Transformação”, “108 Contos e Parábolas Orientais”, “O Monge e o Touro”, “O Sofrimento é Opcional”, “O Inferno Somos Nós (com Leandro Karnal) e “A Monja e o Professor”(com Clóvis de Barros Filho), “Verdade?, “Nem Anjos Nem Demônios”(com Mario Sergio Cortella), “O Bom Contágio”, “A Redescoberta da Existência” (com Alsem Grün), “Tempo de Cura” e “A Monja e o Poeta” (com Allan Dias Castro), “Mãos em Prece”, “Sobre o Amor”, “Que Sementes Você Está Regando?”, entre outros.
Nessa nova entrevista, concedida ao editor de Regional, Renato Lima, Monja Coen reflete sobre a experiência de envelhecer e sua nova obra literária. Veja abaixo a conversa, na íntegra:
REVISTA REGIONAL: A velhice tem sido estigmatizada. Envelhecer é algo indesejável? Será melhor morrer jovem?
MONJA COEN: Eu estou a envelhecer, lentamente, e posso apreciar as diferentes fases da vida sem apego e sem aversão.
Embora muitas pessoas hoje em dia evitem certos procedimentos estéticos e aceitem suas marcas do envelhecer, alguns ainda buscam as técnicas de botox, harmonização, etc., para retardar o relógio. É também uma forma delas se sentirem bem. Como analisa essa questão?
Pessoas que procuram meios estéticos para manter a aparência jovem ou para mudar sua aparência, quer seja para ficar mais saudáveis e belas, de acordo com os padrões da vida atual, são pessoas que, como todas as outras, querem ser admiradas, incluídas e respeitadas. Nada errado. O excesso é o que pode ser prejudicial. Buda dizia que o caminho do meio é o caminho da sabedoria e este evita excessos e insuficiências. Há uma pressão de grupos sociais, de propaganda, de atores e atrizes nacionais e internacionais que influenciam outras pessoas a querer manter uma imagem jovem, bela, atraente, sensual, de acordo com determinados padrões. Algumas vezes as empresas de televisão, cinema, exigem esses procedimentos de seus contratados. Por outro lado, há as empresas e as pessoas que aceitam o passar dos anos e as mudanças decorrentes, com alegria e se recusam a fazer tratamentos específicos para manter a aparência considerada ideal. Será que, algumas vezes, nos sentimos jovens e nosso exterior nos assusta ao ver que estamos a envelhecer? Vale pensar sobre o assunto. As decisões devem ser tomadas caso a caso, sem julgamentos preconceituosos. O bem estar físico depende também de nosso bem estar mental, emocional. Quando somos capazes de nos amar e nos respeitar, capazes de nos acolher e cuidar – quer seja através de processos modernos de transformação do corpo e da face, quer seja pela aceitação das mudanças do tempo, a vida pode ser mais gostosa de viver.
Como podemos buscar essa leveza com o passar do tempo e do envelhecer, principalmente num mundo cada vez mais tecnológico e digitalizado, bem diferente de poucos anos atrás?
O mundo tecnológico e digitalizado pode nos trazer maiores reflexões sobre o passar do tempo, a velhice e a morte. Há vários exemplos de atrizes, atores, apresentadores de televisão, influenciadores que não fogem da velhice nem da morte. Aprendemos a compreender que não há nada fixo nem permanente. Viver é estar em um processo incrível e rapidíssimo de transformação. Por isso, o título do livro: “Em cada instante nascemos e morremos bilhões de vezes.” O que é um instante? Este instante? Ao escrever instante já estou em outro instante. Tomar consciência da impermanência é o princípio fundamental dos ensinamentos de Buda.
Falando da digitalização, dizem que hoje o tempo passa mais rápido, talvez por conta das horas excessivas nas redes sociais ou do excesso de informações que temos diariamente. Como a senhora analisa os malefícios do mundo digital e agora da influência da Inteligência Artificial em nossas vidas?
Parece que temos menos tempo? Ou será que temos mais tempo? Vamos considerar: somos o tempo. E somos o tempo da era em que estamos. Impossível querer ser como foi no passado ou projetar como seremos no futuro. A tecnologia e a IA (Inteligência Artificial) não são inimigas do ser humano, nem da sociedade. Tudo depende em quanto e como usar o que temos ao nosso dispor. A IA tem e é alimentada pela inteligência humana. Sabemos usar o que criamos? Ou somos engolidos pela nossa criatura? Há pessoas que bebem com arte e prazer. Há pessoas que são engolidas pela bebida e desaparecem. Como tudo que existe, há um ponto de equilíbrio que pode ser apreendido, treinado, formado, educado. Educação sempre em primeiro lugar – saber usar o que temos ao nosso dispor, para o bem de todos os seres, todas as formas de vida. Conhecer a si mesmo, conhecer a mente humana – incessante e luminosa, é a arte de viver .
Estudos mostram transtornos mentais causados pelo uso excessivo das redes sociais, tanto que o governo dos EUA sugere que essas redes compartilhem aviso de risco à saúde mental aos seus usuários, principalmente os mais jovens. Meditar é uma saída?
A meditação, que na minha tradição religiosa chamamos de Za Zen – Sentar em Zen, é o portal principal para a nossa casa verdadeira, casa de riquezas incomensuráveis, de inúmeros aposentos, que podemos ir conhecendo, nos aprofundando e apreciando. Recomendo sempre que sigam alguém que tenha competência em práticas meditativas. É um processo ao mesmo tempo delicado, que, se não houver boa mentoria, invés de se aprofundar na verdade e na realidade, pode levar o praticante a adentrar uma paralela e se achar um ser superior e iluminado. Essa é uma das armadilhas do caminho. Estamos em harmonia e comunhão com tudo e todos, além dos julgamentos de melhor ou pior, mas reconhecendo o que é, assim como é. A pessoa que desperta nunca dirá que é um ser especial ou melhor do que qualquer outra pessoa. A prática incessante, sem esforço é a trajetória de quem pratica Zazen. Como tudo na vida, sem excesso e sem falta. Qualquer excesso pode levar a doenças quer físicas quer psíquicas ou espirituais. Educar para saber usar e apreciar a tecnologia é essencial. Não é negar nem afastar ou temer, mas saber usar como o fogo, sem se queimar poder cozer alimentos e nos esquentar.
E como um leigo pode ingressar na meditação? Existe uma maneira fácil para isso? Pode compartilhar esse aprendizado com nossos leitores?
A meditação é uma das funções da mente humana. Não é apenas para iniciados, religiosos, seres especiais. É a condição natural de todo ser humano. Precisamos encontrar um local que seja silencioso, nem muito quente nem muito frio, nem muito claro nem muito escuro. Sentar numa cadeira, sem se encostar e com os pés firmes no chão – é uma das posições. Ou sentar numa almofada arredondada, cruzar as pernas na posição de lótus – pé direito sobre a coxa esquerda e pé esquerdo sobre a coxa direita, ou meia lótus – apenas um dos pés sobre a coxa contrária. Nessas posições os dois joelhos devem tocar o chão formando um triângulo de base.
Caso seu corpo não esteja em condições de assumir essas posições, pode colocar os dois pés no chão, sem colocar as pernas uma sobre a outra. Se mesmo essa posição for complicada, pode se ajoelhar e colocar uma almofada entre as pernas como se montasse. Ou sentar na cadeira, beirada da cama, raiz de uma árvore, um montinho de terra ou de areia. Ou seja, manter os ísquios elevados, os ossos da bacia, mais altos e alongar a coluna vertebral, dando mais espaço entre as vértebras. A cervical também deve ser alongada como se houvesse um fio de prumo nos puxando para o céu. Assim fazemos a ponte entre o céu e a terra com nosso próprio corpo. Caso nenhuma dessas posturas seja possível, há quem faça zazen deitado, de preferência mantendo a coluna vertebral reta, alongada. Depende do corpo e das condições físicas de cada pessoa. Há vários detalhes da posição das mãos, da respiração consciente e assim por diante que podem ser praticados por iniciantes. Alguns contam as expirações de um a dez, outros recitam mantras – frases semelhantes inúmeras vezes, outros usam visualizações. São todos meios hábeis para aprender a ter foco, a estar presente no presente, a apreciar a vida assim como é. E este ‘assim como é’ não é fixo. Está nascendo e morrendo bilhões de vezes cada instante.
Perceber quem somos e o que somos, nosso papel individual, familiar, social é meditar. Reconhecer nossos sentimentos e sensações, reconhecer o processo mental fluido e incessante é meditar. Fazer o voto de nunca fazer o mal, sempre fazer o bem e sempre fazer o bem a todos os seres é meditar. Não é apenas a plena atenção. É questionar-se, procurar, encontrar e continuar a procura guiados por um comprometimento ético de sair de um eu menor para um eu maior, para o nós – primeira pessoa do plural. Convido a todos que pratiquem Zazen. Venham ao Zendo Brasil, conheçam esta prática milenar que tem sido transmitida de geração a geração.
Mais informações do Zendo Brasil, no site: www.zendobrasil.org.br
entrevista a Renato Lima ( @lima_renato )
fotos: Leandro Marcondes de Melo