Considerado um dos mais renomados e queridos chefs e padeiros do Brasil, o francês Olivier Anquier revelou sua profunda conexão com a gastronomia nessa entrevista exclusiva à Revista Regional. Desde jovem, Olivier foi influenciado pelo sabor e pelas histórias da culinária, especialmente através de seu pai (François), cultivando um amor intenso pela cozinha francesa. Ao chegar ao Brasil em 1979 para um mês de férias, o francês foi encantado pela cultura e pelo calor humano dos brasileiros. O país introduziu-o a novos ingredientes, técnicas e uma visão renovada da gastronomia, enfatizando a importância dos produtos frescos e da biodiversidade local. Sua permanência no Brasil foi motivada por um desejo de inovação e autenticidade, combinando sua herança francesa com os sabores distintos do Brasil em sua culinária. Por aqui, formou família, abriu restaurantes e padarias, e foi apresentador programas na TV. Abaixo, você confere um pouco do nosso papo com Olivier.
REVISTA REGIONAL: Mundialmente conhecida, a culinária francesa é altamente reverenciada e é considerada uma das mais refinadas e influentes. Como a sua origem francesa influenciou a sua paixão pela gastronomia e a sua abordagem na cozinha?
OLIVIER ANQUIER: Essa paixão foi injetada em mim pela família. De certa forma, veio do meu pai (François). Quando falo de culinária, refiro-me a ele. A panificação veio do lado da minha mãe (Myriam), que também é padeira. Ela representa a segunda geração de padeiros na minha família; eu sou da terceira geração. A paixão pela culinária, o prazer de cozinhar e de proporcionar prazer para as pessoas ao oferecer o que preparamos veio do lado do meu pai. E, claro, a influência francesa se deve à rica tradição culinária da França. A cozinha francesa é única, distinguindo-se das demais pelo domínio no preparo dos molhos. A identidade da culinária francesa está nos molhos. Fazemos molhos para tudo e todas as etapas da refeição. Além disso, toda refeição na França é acompanhada por pão. Essa influência francesa está presente na minha vida profissional aqui no Brasil. Inclusive, tenho um prato chamado “Olivier”, que consiste em bife com batata frita, acompanhado do molho secreto da minha tia. Aqui, todos os pratos têm essa alma particular, graças aos molhos que preparamos, que é a verdadeira particularidade da culinária francesa.
Sobre a sua família francesa, qual a importância que ela teve sobre a sua carreira na gastronomia? Há alguma tradição culinária familiar que te remete à infância ou aos momentos mais felizes em família?
A influência foi determinante e preponderante. Se hoje eu cozinho é devido à paixão do meu pai pela cozinha e ao nosso envolvimento desde a infância. A força dessa influência é evidente quando lembro que, todos os domingos, meu pai preparava o almoço dominical e contava com a minha ajuda e a do meu irmão mais novo. Nossa tarefa, muitas vezes a contragosto, era descascar batatas. Teríamos preferido estar brincando com os amigos lá fora, mas aquele era o ritual dos domingos. Assim, querendo ou não, nos imbuímos dessa paixão e desenvolvemos uma cumplicidade com o universo da cozinha. Essa mesma paixão e desenvoltura eu compartilhei com milhões de brasileiros por meio do programa que criei e apresentei durante 20 anos no GNT, chamado “Diário do Olivier”.
Para complementar, no Brasil você construiu uma família. Das receitas que você aprendeu durante a sua infância, de que maneira você compartilha esse conhecimento com os seus filhos? Qual a sensação de compartilhar não só receitas, mas memórias? O que vem à sua mente quando você volta ao passado?
No que se refere à família, efetivamente construí duas. Em ambas, senti o ímpeto de compartilhar a essência da casa francesa, onde a cozinha é considerada a alma da moradia. Por isso, fica claro como todos os meus filhos possuem essa conexão com o universo culinário. Essa relação com a cozinha, que herdei dos meus pais e eles de meus avós, foi transmitida por mim aos meus descendentes.
Em 1979, você decidiu morar no Brasil. Qual o impacto que a culinária brasileira teve sobre você e, quando pensamos em gastronomia, o que mais te atraiu neste país de diversidades?
Quando cheguei ao Brasil em 1979, a intenção era apenas passar um mês de férias. Contudo, esse mês se estendeu e, hoje, costumo brincar dizendo que estou de férias aqui há 44 anos. O que realmente me cativou e fez com que eu decidisse permanecer não foi apenas o que me atraiu, mas a forma peculiar e única com que o brasileiro encara a vida. É uma perspectiva tão distinta do que vivenciei nos primeiros 20 anos da minha existência. O calor humano, a leveza no viver, a facilidade de comunicação, o toque, enfim, toda a essência do jeito brasileiro de ser. Foi ao compreender e valorizar essa maneira de viver, tão diferente do que havia experimentado até então, que decidi fazer do Brasil a minha casa, tudo graças à essência do povo brasileiro.
Olivier, com os programas de culinária, a gastronomia se popularizou no Brasil. Como você vê essa evolução no país ao longo dos anos? Qualquer pessoa é capaz de cozinhar?
A capacidade de cozinhar é inerente a qualquer pessoa, independentemente de sua origem ou nacionalidade. Assim como todos nós, seja brasileiro, japonês, chinês, nigeriano, francês ou americano, nascemos sem saber andar ou falar, aprendemos essas habilidades com o tempo e a prática. O mesmo se aplica à culinária. Alegar incapacidade é mais uma escolha pessoal do que uma verdadeira falta de habilidade. Se há vontade e desejo, qualquer um pode aprender a cozinhar.
Ao longo dos anos, você construiu uma carreira notável na gastronomia e na TV brasileira. Quais foram os principais desafios que enfrentou durante essa jornada?
Durante 20 anos, estive à frente do “Diário do Olivier”, um programa que criei, produzi, roteirizei e dirigi, além de apresentar. Com ele, motivei milhões de brasileiros a se aproximarem da cozinha e despertei neles o desejo de aprender a cozinhar. Lançado em 1998, o “Diário do Olivier” foi o primeiro programa moderno de culinária na TV brasileira, transmitido pelo GNT, um canal por assinatura da Globo. No que se refere ao conteúdo, às aventuras vividas e à satisfação de descobrir e apresentar novidades culinárias, não enfrentei desafios específicos. Os maiores obstáculos estiveram em outras áreas, sobre as quais prefiro não entrar em detalhes aqui. No entanto, é com imenso prazer, orgulho e gratidão que reconheço o carinho do público brasileiro, que sempre me acolheu como parte de sua família. Esse sentimento me faz extremamente feliz.
Sua abordagem na cozinha sempre enfatizou ingredientes locais e frescos, porém houve um aumento no consumo de industrializados. Como conscientizar as pessoas de que consumir alimentos frescos é muito mais saudável? Qual o caminho a ser tomado?
Sempre dei ênfase a ingredientes locais e frescos, pois isso é intrínseco à minha cultura. A trajetória cultural da minha origem difere da história do Brasil em relação à alimentação. O advento dos alimentos industrializados no Brasil não é recente. Desde a época de Getúlio Vargas, a culinária cotidiana brasileira foi transformada pela presença marcante dos industrializados. Foi Vargas quem solidificou essa presença nos lares brasileiros, sob o pretexto de que alimentos frescos e não industrializados poderiam ser prejudiciais à saúde. Uma consequência desse posicionamento de décadas atrás é a atual vigilância sanitária, que frequentemente restringe o consumo de alimentos como ovos frescos. Venho de uma cultura que preza justamente pelo oposto. No programa de culinária que apresentei, busquei explorar e valorizar os produtos locais, que, para mim, eram novidades e curiosidades a serem descobertas.
Olivier, já faz bons anos que você mora no Brasil. Mas você sente saudades de casa? Quando sente essa saudade, como faz para acalmar o coração?
Já faz muitos anos que estou aqui e, se me perguntam se sinto saudades de casa, ou melhor, do meu país e cidade de origem, a resposta é não. Há 30 anos, escolhi me naturalizar brasileiro porque me identifico profundamente com este país. Não tenho nenhuma saudade da França, e vivo com orgulho de ser brasileiro.
entrevista: Ester Jacopetti
fotos: crédito: Jaime Leme