Renata Sorrah fez sua estreia em 1970, na novela “Assim na Terra Como no Céu”, de ninguém menos do que Dias Gomes. Em seguida, emplacou um novo trabalho com Walter Negrão, em “A Próxima Atração” (1971), e, desde então, não parou mais! Os sucessos foram acontecendo, como em “O Casarão” (1976), que lhe rendeu o primeiro prêmio de Melhor Atriz da Associação Paulista de Críticas de Arte (APCA). Já em 1978, ela repete a parceria com Dias Gomes e faz “Sinal de Alerta”. Depois de inúmeros trabalhos e sua importante contribuição para a arte, interpreta a inesquecível Heleninha Roitman de “Vale Tudo” (1988), uma das maiores novelas da TV brasileira, assinada por Gilberto Braga e Aguinaldo Silva. Com este autor, ela ainda fez “Pedra Sobre Pedra” (1992), “A Indomada” (1997), e o sucesso estrondoso da Nazaré Tedesco, a vilã icônica de “Senhora do Destino” (2004), trabalho este que está sendo reprisado, diariamente às 22h50, no canal Viva.
Renata Sorrah é considerada uma das atrizes mais importantes da teledramaturgia brasileira e tem em seu legado trabalhos icônicos que fizeram e fazem parte da história da TV e, hoje, após anos se dedicando à arte de interpretar, continua com o mesmo vigor. São poucos os adjetivos para elogiar tamanho talento. Atualmente, ela dá vida a Wilma, em “Vai na Fé”, novela das 19h da Globo, e está simplesmente perfeita! Apesar de a personagem não ter nada a ver com a diva da televisão e do teatro, Sorrah faz com maestria e dedicação. A seguir, uma entrevista exclusiva com esse verdadeiro ícone da TV brasileira.
REVISTA REGIONAL: Renata, você trancou a faculdade de Psicologia na PUC para se dedicar ao teatro, sua grande paixão. Após esse período se dedicando à arte cênica, o que te move a continuar vivendo outras vidas e o que os anos na profissão trazem de frescor para o ator?
RENATA SORRAH: As histórias, as personagens, as vozes que acesso e crio como atriz, seja no teatro, no cinema e na TV, são aspectos diversos e, ao mesmo tempo, misteriosos, dos comportamentos humanos e da memória ancestral de tantas existências ao longo da história da humanidade. Eu, como atriz, evoco tudo isso em mim, no meu corpo, com a minha sensibilidade, técnica e conhecimento. Sou eu que estou ali, em cena, mobilizando minha presença viva para materializar, na relação com o público, vibrações e sentidos distintos a cada experiência artística. Sou eu, é a minha vida, mostrando outras possibilidades de vida.
Renata, o teatrólogo Amir Haddad teve uma importância muito grande no início da sua carreira como atriz. Você diria que ele foi o principal responsável pela pessoa que você é hoje? Qual a importância dele na sua vida?
Sim! É o principal responsável pela atriz que sou! Foi ele que olhou para mim e, pela primeira vez, falou: “você é uma atriz”… E ele é muito importante até hoje! Espero, sinceramente, que, sempre que me vir a atuar, o Amir se sinta orgulhoso por ter aberto todas as portas do teatro e da vida para mim. Espero que o Amir saiba que, ao me abrir essas portas, justamente no período da ditadura militar, me deu a possibilidade de ser livre!
Fazer cinema, TV e teatro são artes diferentes. O cinema é mais curto e rápido, o teatro é mais artesanal e a TV tem todo um processo para acompanhar a saga da personagem. Em qual deles você se sente realizada profissionalmente?
Quando eu quis ser atriz, meu primeiro movimento foi em direção ao teatro. Depois, veio a TV. Cinema não fiz muito… Acho muito interessante atuar em todos esses processos criativos! Quando é apresentado um desafio, um texto interessante, uma boa direção e colegas incríveis, gosto de estar em qualquer um desses meios.
A disciplina é importante para quem quer continuar interpretando. Quais outras características você acredita ser essencial e como você encara os desafios da profissão nos dias de hoje, já que o público também mudou com o avanço das tecnologias que trazem outros meios de diversão para o telespectador?
Em 1974, fiz a peça “A Gaivota” de Anton Tchekhov, foi a primeira montagem no Brasil desse texto tão importante para a história do teatro. Eu fazia uma personagem chamada Nina, uma jovem que sonha ser atriz e que realiza isso, se torna profissional. Ela amadurece no palco, trabalhando. Aprende sobre o teatro, sobre a vida. E ela tem uma fala, na parte final da peça, que diz: “… agora eu compreendo que o essencial em nossa profissão não é a glória, nem a fama, nem nada daquilo com que eu sonhava, e sim saber aguentar com paciência… saber carregar a cruz e ter fé! Eu tenho fé, e já não sofro tanto. E quando penso em minha vocação, não tenho medo da vida.” Acho que tem indicações importantes sobre a profissão do artista nessa fala da Nina. É preciso estar seriamente comprometido. Ser artista demanda disciplina, equilíbrio emocional, um amplo repertório intelectual, uma vasta curiosidade sobre o mundo, sobre os outros, sobre o passado, o presente e o futuro. E demanda também racionalidade como antídoto aos possíveis deslumbramentos exagerados.
Como é ver a Nazaré de “Senhora do Destino” ultrapassar 19 anos, gerações e ainda assim, continua viva na memória das pessoas? Como é ser ovacionada por essa personagem que teve um marco na dramaturgia brasileira?
Em primeiro lugar, ter feito essa novela do Aguinaldo Silva com um elenco incrível, Susana Vieira, José Wilker, Carolina Dieckmann, Leandra Leal, Guida Vianna… Uma das melhores novelas que já foram feitas! É um privilégio e um orgulho. A personagem se transformou em um “meme” mundial, uma coisa tão contemporânea… Acho que a Nazaré ter se tornado, em alguma medida, um ícone da cultura pop digital é uma coisa inesperada, claro, mas interessantíssima!
Renata, você vem de uma geração que presenciou grandes marcos na história do Brasil, e uma delas foi o período da ditadura militar. Apesar da pouca idade, você tinha noção do que acontecia no país naquela época?
Sim! Eu tinha plena consciência do que acontecia no Brasil naquela época. Eu estreei, no palco, fazendo parte do TUCA, um grupo teatral jovem que lutava contra a ditadura, integrando a AP (Ação Popular). Amir (Haddad) foi nosso mestre! Enfrentávamos, entre outras questões, a censura pesada daquele tempo. Nas primeiras peças que fiz tínhamos no camarim pedaços de madeira, para nos protegermos das invasões do CCC, o Comando de Caça aos Comunistas. Eles invadiam os teatros, batiam nos atores e eram contra qualquer manifestação cultural!
Em sua opinião, qual a importância do movimento feminista e como você enxerga as conquistas que estão acontecendo?
Como mulher, cidadã, artista, mãe de uma mulher, avó de uma menina, tenho plena convicção da enorme importância do movimento feminista. Nas dimensões macro políticas e nas questões íntimas, mais subjetivas também. Desde o direito ao voto – luta do movimento sufragista, na primeira onda do feminismo – até hoje, quando ainda é preciso dizer que a criação dos filhos e as tarefas domésticas, por exemplo, não são responsabilidades exclusivas das mulheres e precisam ser partilhadas com os homens. As reivindicações feministas foram e são imprescindíveis! Temos ainda muitos enfrentamentos pela frente! Ainda é preciso lutar por igualdade salarial para todas. E lutar muito contra a violência que o machismo estrutural naturalizou: assédio moral, assédio psicológico, físico, sexual. Os casos de estupro e feminicídio ainda são uma realidade brutal – e cotidiana. Angela Davis, a escritora norte-americana, uma mulher negra, intelectual ativa, militante pela igualdade racial e feminista, diz: “você tem que agir como se fosse possível transformar radicalmente o mundo. E você tem que fazer isso o tempo todo”. Sinto sim que, não apenas o feminismo, mas também os movimentos antirracistas e LGBTQIA+, no tempo da minha vida, tiveram grandes avanços… E isso me dá esperança! Só não podemos ficar otimistas e parar de lutar pela igualdade de direitos e pelo respeito às diversidades!
A Wilma de “Vai na Fé” é descrita como egoísta, vaidosa, durona, sem filtro que tenta ser chique em meio à cafonice ao seu redor. Dá pra dizer que esse tipo de personagem é um prato cheio para o ator que gosta de viver personalidades diferentes e só teriam a chance através dos personagens?
A Wilma é temperamental, não tem filtro. É ressentida, se sente injustiçada… E expressa essa amargura de um jeito ácido, até divertido, irônico… Mas vejo outro lado nela também. Foi uma grande atriz de teatro, TV e cinema. Viveu intensamente o reconhecimento do público e perdeu isso. Por etarismo, pelo preconceito dos outros. E, hoje, ao invés de ser uma ex-diva, medicada, trancada no quarto, ela continua ativa! Tem devaneios e sente saudades das glórias do passado, mas está vivendo o presente. É empresária do filho que é um cantor brega. A Wilma oscila entre a realidade e o delírio. É uma mulher delirante! “Vai na Fé” é uma novela deslumbrante. Eu estou super feliz de estar fazendo esse trabalho, o elenco é incrível. Quando eu li sobre a personagem achei sensacional, um papel incrível, e eu dividi a personagem entre passado e presente. No passado, ela foi uma atriz que começou no teatro de rua, fazendo grandes personagens como Medeia, Macbeth, depois ela foi para a TV e se tornou uma celebridade, ela quis ser uma celebridade. Como é juntar essa mulher que fez teatro, trabalhos incríveis na televisão e no presente se tornou uma mulher amarga, com problemas? Ela ama o filho, mas tem uma relação muito difícil com ele, ela é dura com ele. O que foi que aconteceu? Eu achava que ela fosse muito parecida comigo. Ela ganhou prêmios. Volta e meia ela cita alguma fala de um personagem que interpretou ou de um autor que admira. Wilma é uma mulher egoísta, vaidosa, sem filtro que tenta ser chique em meio à cafonice ao seu redor, nunca admirou o artista que tem em casa. Mas eu não sou essa mulher que ela se tornou, ela não tem nada a ver comigo, ela era carreirista, isso no passado, querendo ser uma celebridade, competindo com as colegas, contando o número de falas que ela tinha, ela era sim, querendo ser uma estrela, mas veio essa coisa do etarismo, e ela não pode continuar porque achavam que ela estava velha.
A novela fala sobre sentimentos e isso talvez gere identificação com o público que estará assistindo e o sentimento está inclusive no nome da novela (Vai na Fé). Qual é a fé da Wilma e o que vai chegar até o espectador que está do outro lado da telinha?
Essa pergunta é difícil de responder porque é no decorrer da novela que você vai jogando com isso e recebendo uma resposta do público. O maravilhoso da novela é que durante seis meses desenha-se um caminho de troca, a gente dá e eles recebem e mandam de volta, e os autores estão capitaneando isso. Essa novela tem uma diversidade incrível e eu acho maravilhoso como foram pegando pessoas de várias idades, é incrível e isso é outro na novela.
entrevista e texto: ESTER JACOPETTI