A professora Maria Ângela Pimentel Mangeon Elias contribuiu ativamente 70 anos da sua vida para a educação. Começou a dar aulas aos 19 e, em parceira com o professor Rubens Anganuzzi, transformou uma faculdade de Pedagogia e Letras em dois centros universitários. Hoje, aos 95 anos de idade, segue lendo e escrevendo todos os dias, se adequou à tecnologia e não abre mão de celular e computador. Nesta entrevista exclusiva concedida à Revista Regional para este “Especial Educação”, Maria Ângela conta que está prestes a lançar seu primeiro livro, será sobre sua convivência com as Irmãs de São José, da Igreja Nossa Senhora do Patrocínio, em Itu.
REVISTA REGIONAL: A senhora começou sua carreira de professora aos 19 anos e seguiu trabalhando no Ceunsp (Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio) até perto dos 90 anos. Qual foi a maior motivação para a senhora seguir na profissão por tantos anos, contribuindo para um educar de qualidade?
PROFESSORA MARIA ÂNGELA: O que motivou foi dar aulas para meus primos. Estudávamos no Culto à Ciência em Campinas, eu era da turma mais avançada e eles não gostavam de estudar. E eles aprendiam comigo e não na escola. Dava aula de tudo para eles com 13 anos e ficava muito feliz de ensinar e eles entenderem. Ensinar me deixava feliz e motivada. Comecei a dar aulas em Cajuru. Sou de Amparo e minha família morava em Campinas. Eu sempre quis estudar, meu sonho era estudar Inglês nos EUA, mas meu pai não deixou. Naquela época, ele falava que filha dele não ia estudar fora do país não. USP (Universidade de São Paulo) ele também não me deixou fazer e, depois de muito insistir, ele me deixou cursar a PUC (Pontifícia Universidade Católica), em Campinas. Eu fui para a primeira turma da faculdade e ele só deixou porque era na mesma cidade.
Antes de me formar já comecei a falar em trabalhar e em estudar Inglês na capital. Mas ele não deixava também. Aí um dia falei que ia trabalhar e ele querendo que eu ficasse na fazenda, tocando piano com a minha mãe e esperando um namorado da época terminar os estudos dele para noivar e casar. Mas eu não queria isso não. Depois de muito insistir consegui algumas aulas em Cajuru. Não havia convento para alugar moradia e minha mãe conseguiu uma casa de família para me hospedar. E assim comecei a minha trajetória profissional na Educação. Foi em Cajuru que também conheci meu marido (Lauro Elias), morei, tive filhos, até que decidimos nos mudar para perto de São Paulo. Meu marido estudou em São Paulo e não queria morar lá. Comecei a buscar aulas em cidades próximas à capital e a melhor opção era em Itu. E assim viemos parar aqui.
E como foi chegar a uma cidade nova e lecionar?
Cheguei aqui com 33 anos. Fui dar aulas no Regente Feijó, na época o professor João Bispo era o diretor. Era outro tempo, todo mundo conhecia todo mundo e eu me apaixonei por esta cidade. Meus filhos ficavam nos colégios e creches sob os cuidados das Irmãs do Patrocínio e assim eu comecei uma convivência com elas, que acabou impactando toda a minha vida profissional.
Com o tempo, o professor João Bispo me convidou para assumir a vice-diretoria do Regente Feijó. Meio período eu dava aula e outro período o ajudava na direção. Os alunos eram muitos bagunceiros, arteiros mesmo, mas a minha sala era comportada. Eu conseguia bom comportamento sendo amiga dos alunos, conversava muito com eles, os trazia para o meu lado. Na direção da escola era a mesma coisa. Quando o aluno aprontava e ia para a diretoria, sempre conversava muito com ele para entender o comportamento e aconselhá-lo. Deu certo, porque até hoje tenho ex-alunos que são meus amigos e recordam com alegria toda sua trajetória escolar.
A carreira da senhora na vida universitária teve início com a convivência com as Irmãs do Patrocínio?
Sim. O Colégio do Patrocínio era uma coisa maravilhosa. Com a convivência diária fomos criando uma amizade e sempre conversamos muito. Já existia a faculdade e elas pensavam em vender. Começaram a receber muitas propostas e elas começaram a se aconselhar com o meu marido, que era uma pessoa incrível e as ajudava muito com os negócios. Um dia elas nos chamaram para ir a Braz Cubas, em Mogi das Cruzes, que era junto com a Faculdade São Marcos. Era um grupo mais moderno e a ideia era investir na educação local mesmo, então elas acabaram vendendo. Quando eles assumiram a faculdade em Itu pediram às Irmãs alguém que pudesse fazer um relacionamento com as pessoas da cidade e todos me escolheram.
Então a senhora passou de professora a Relações Públicas da faculdade?
Sim. Eu fui contratada para ser Relações Públicas e trabalhar das 14h às 18h. Nunca fui Relações Públicas e nunca trabalhei apenas neste período. Foi muito mais e foi maravilhoso.
Em 1971 foi nosso primeiro ano na faculdade. O professor que veio tinha um ideal como eu, que era a educação e, por isso, deu muito certo. Trabalhava até à noite e aos finais de semana. Ele falava assim: ‘na minha escola gente que não tem dinheiro não tem que ir embora, tem que ficar’. E ficava mesmo! A gente dava um jeito, dava bolsa de estudo. Ninguém ficava sem estudar porque não tinha dinheiro.
Como foi contribuir ativamente para a vida de tantos alunos que puderam fazer um curso superior graças ao Ceunsp, que de uma faculdade de Pedagogia e Letras se transformou em uma potência regional de educação?
O ideal da faculdade, desde o início, era o levantamento social da região. Íamos atrás dos possíveis alunos em Porto Feliz, Salto, Cabreúva. Com muito trabalho e com o passar dos anos, começamos a ter mais cursos. Íamos para Brasília todo mês para buscar cursos, sentávamos no Ministério da Educação, fazíamos processo. E foi crescendo. Até que chegou a época do Centro Universitário, mas o professor Rubens (Anganuzzi, reitor da faculdade na época) queria que fossem dois centros, um em Itu e outro em Salto. A gente não tinha nenhum e ele queria os dois. E conseguimos! O Ceunsp foi o primeiro centro universitário com duas sedes, uma em cada cidade.
Para isso, o professor Rubens negociou o prédio da antiga fábrica Brasital/Santista em Salto. Ele queria expandir e teve que investir, mas já fez a aquisição pensando na restauração do prédio. Ele não demolia nada, muito pelo contrário, restaurava tudo e respeitava a história local. Por conta disso que eu fiquei 45 anos no Ceunsp, por conta desse ideal histórico e educacional.
Quando o professor Rubens faleceu, ainda continuei na faculdade. Mas quando a família vendeu, em 2015, aí chegou a minha hora de sair. Avisei que ficaria mais seis meses e que sairia, porque não queria que os novos donos chegassem, sugassem tudo da gente e depois nos dispensassem, como realmente fizeram com os profissionais que ficaram. Na época, deixamos o Ceunsp com mais de 80 cursos.
A senhora sente falta da sala de aula?
Não sinto não! Porque na vida o educar sempre foi muito mais do que estar dentro da sala de aula. O meu ideal era levar a possibilidade de estudar, das pessoas terem uma profissão e dediquei 45 anos da minha vida para isso. Eu cuidava dos contratos dos professores, era a responsável por cada contratação e sabe o que eu e o professor Rubens levávamos em consideração? Não era título, isso era o que menos nos importava, mas sim o que o professor tinha por dentro, a vontade de ensinar, o ideal dele. Tinha que ser um ideal de educação igual ao nosso.
A senhora vem de uma época em que professor era muito respeitado dentro e fora da sala de aula. Infelizmente hoje não vemos mais tanto respeito e admiração para muitos. O que atualmente temos de bom no mundo educacional e o que deveríamos esquecer?
Eu comecei a dar aula em 1946, com 19 anos. Professor era uma sumidade. Respeitado e muito admirado. A gente ensinava porque as crianças e pessoas queriam aprender. As famílias confiavam demais no nosso trabalho. Só para você ter uma ideia, quando eu comecei a dar aula, professor, juiz de direito e promotor público tinham o mesmo ordenado. E hoje? Quem quer ser professor hoje em dia e ganhar o que pagam?
Era uma responsabilidade ser professor. Antes as pessoas lembravam o nome da primeira professora, agora nem lembram mais. Isso não é falta de memória, mas sim de educação. Hoje em dia aluno bate em professor.
Nós temos que lutar, porque o povo brasileiro precisa de educação. A rede pública tem que ser integral. Quem tem dinheiro paga escola, mas quem não tem? Precisamos educar, só isso vai melhorar nosso país. Mas infelizmente a educação é o primeiro setor a ser prejudicado em qualquer sinal de crise econômica, porque simplesmente tiram recursos e está tudo bem para quem faz isso. Aqui em Itu temos uma educação boa, as escolas estão passando aos poucos a ser integrais e isso é muito bom. Aluno tem que ficar na escola! A escola forma a personalidade da criança.
Hoje temos a tecnologia, que é uma grande aliada, mas também virou um problema, porque atrás dela precisa ter algo que chamamos de valores. Instruir é uma coisa, mas educar é outra. Respeitar o outro, entender o seu semelhante, não derrubar em cima do outro a sua frustração, são valores que vêm de casa, que as famílias precisam ensinar e infelizmente não ensinam mais.
Muito difícil saber o colégio ideal hoje em dia. Existem colégios caros, mas nem sempre o mais caro é o melhor, por conta de como se forma nele. O que e como ensinam para as crianças. Professor não pode falar algo para a criança que o pai vai tomar satisfação. Hoje em dia é muito difícil ser professor.
A senhora sempre foi muito ativa e participativa em outros projetos como a Acadil (Academia Ituana de Letras), por exemplo. De onde vem tanta energia e disposição?
Eu tenho 95 anos completos, trabalhei no Ceunsp até os 89 anos. Faço parte da Acadil ainda, já fui de tudo um pouco lá e agora estou como secretária. Leio muito, escrevo, uso computador e celular. Eu vivo o mundo atual e jamais falo mal do tempo que estou vivendo, por que o que estou fazendo para melhorar o atual? Tenho que me adaptar, dar valor e colaborar com ele.
Muita gente me pergunta o que eu faço o dia todo. Eu amo dormir e graças a Deus durmo muito bem, o que me garante um dia cheio de energias. Faço tricô, escrevo, leio e cuido muito da minha saúde e da minha alimentação. Sempre fiz isso, a vida inteira e acho que é importante a gente cuidar ao longo dos anos para manter quando estivermos mais velhos. A velhice não me assusta, muito pelo contrário. Tenho orgulho de tudo que vivi, minha vida é e sempre foi muito boa, maravilhosa mesmo. Tenho lembranças de tudo, até da Revolução de 1932, quando eu tinha seis anos.
A senhora é amante da escrita e da leitura. Dona de muitos contos, poesias e textos, que para um livro seria apenas mais um passo. Nunca foi prioridade escrever um?
A vida inteira eu escrevi. Tenho até uma história interessante que vou contar. Na minha infância era muito comum as pessoas nos visitarem em Amparo. Tinha umas primas que eram professoras e sempre iam na nossa casa e uma delas me ensinou escrever meu nome completo Maria Ângela Pimentel Mangeon. Quando fui para a escola, minha primeira professora que se chamava Eleonor me recebeu e apresentou para a turma de alunos. Ela me perguntou se eu sabia ler e eu rapidamente respondi: não sei ler, mas sei escrever. Todo mundo riu. Aí ela me pediu para ir à lousa e escrever. Fui lá e escrevi o meu nome e ela fez todo mundo me aplaudir porque eu sabia escrever mesmo. Isso é ser professora.
Antigamente eu tinha aqueles caderninhos de capa preta e escrevia muito neles. Tenho muitos guardados, cheios de memórias, crônicas, afinal, eu amo escrever crônicas. Hoje eu sigo escrevendo. Escrevo a mão e depois digito tudo no computador.
Até penso em coletar todo esse histórico e publicar, mas no momento estou no projeto do meu primeiro livro, que será lançado até o final do ano. Vou lançar um livro sobre as Irmãs do Patrocínio e a minha convivência com elas. Uma visão carinhosa, pois é a minha particular, social e educacional por tudo o que elas fizeram para as pessoas. Educar foi algo muito importante na minha vida e eu tentei passar isso para os outros. Aprendi muito com elas, tenho muito orgulho dos nossos caminhos terem se cruzado nesta vida. Também já comecei a escrever um livro de memórias da minha infância em Amparo, porque eu tive uma vida maravilhosa e preciso compartilhar isso com as pessoas.
entrevista e fotos: Aline Queiroz