- De frente com uma realidade cruel, a jornalista da TV Globo, Ana Paula Araújo, escreve livro sobre a cultura do estupro no Brasil
Ana Paula Araújo apresenta todas as manhãs um dos principais telejornais do país, o “Bom Dia Brasil”, da TV Globo, e mesmo com a rotina intensa de trabalho, dedicou quatro anos de sua vida a pesquisar, entrevistar vítimas e familiares, criminosos, juízes, desembargadores, psicólogos, psiquiatras sobre um assunto que está em pauta no momento: estupro. Em suas longas viagens pelo Brasil, a jornalista conheceu de perto mulheres e crianças, vítimas dessa atrocidade, e todo esse trabalho resultou no livro “Abuso – A cultura do estupro no Brasil”, lançado pela Globo Livros. Diante de um tema tão importante e relevante, Ana Paula concedeu uma entrevista exclusiva à REVISTA REGIONAL neste Mês da Mulher para falar não só sobre o livro, mas sua experiência diante de um assunto delicado e urgente.
REVISTA REGIONAL: Esse tema – “Abuso – A cultura do estupro no Brasil” – é de extrema relevância para a sociedade, um trabalho que com certeza irá ajudar muitas mulheres. Após esses quatro anos de dedicação, quem era a Ana Paula no início do projeto e quem você se transformou depois de ouvir esses dramas reais?
ANA PAULA ARAÚJO: Eu me transformei em uma pessoa mais atenta a como a violência sexual está no dia a dia de todos nós e também como esse assunto é um tabu muito grande. Várias pessoas têm me procurado para contar suas histórias, inclusive pessoas que conheço há anos. Tornei-me uma pessoa mais compreensiva por não saber as dores que os demais enfrentam.
A lei de importunação sexual acabou de completar dois anos, mas poucas mulheres têm conhecimento. Por que você acha que isso acontece? Falta boa vontade das autoridades – em sua maioria liderada por homens – falar sobre o assunto?
Acho que falta conhecimento da lei, tanto por parte da vítima como dos agentes. Falta um acolhimento maior da vítima quando se faz uma denúncia como essa. Se uma vítima de estupro já é desacreditada, imagina em um caso de importunação que não chega a ser tão grave quanto um crime de estupro?
Em 2020, tivemos um caso que chamou bastante atenção da mídia, de um tio que estuprava a sobrinha de dez anos e terminou engravidando-a. E algumas entidades religiosas resolveram se manifestar contra o aborto legal da menor. Como é possível mudar esse comportamento?
Nossa cultura é extremamente machista. Nós temos um conjunto de pensamentos e atitudes entranhados que acabaram criando uma sociedade onde a violência sexual é normalizada. Inclui ideias equivocadas, como a de que “a vítima pediu”, de que “homem é assim mesmo”, que “não é tão grave assim”, de que “é fácil esquecer”. É reflexo de uma cultura que dita que o homem é superior, mais importante, que o desejo dele é que tem que ser levado em conta sempre. Começa desde cedo, quando ensinamos que meninos são fortes e meninas são delicadas, que meninos devem ser agressivos e meninas ficam na retaguarda deles, que tarefas de casa e filhos são funções só das mulheres.
Além das vítimas você também entrevistou os agressores, como foi para você ficar cara a cara com esses homens? Houve alguma reação inesperada por parte deles ou até mesmo sua, diante dos relatos cometidos?
O que mais me chamou a atenção é que muitos deles não demonstram arrependimento. A maior parte deles apresenta um comportamento ótimo dentro da prisão e posa como se nem eles aceitassem o próprio crime.
Durante a leitura do seu livro, eu pude perceber um dado curioso: mulheres que ficam paralisadas durante a agressão sexual nem sempre são consideradas vítimas, porque aparentemente elas consentiram. Como é possível convencer a vítima a procurar ajuda, quando se tem essa brecha a favor do agressor?
O Estado precisa dar condições para que as vítimas denunciem e sejam de fato acolhidas pelas instituições. Hoje, por medo, culpa ou vergonha, 90% delas não denunciam. A minoria que denuncia sai quase sempre sem a punição do culpado, seja pela investigação policial malfeita ou inexistente, seja pela justiça que muitas vezes desconfia da vítima e não tem sensibilidade para compreender a dificuldade em recolher provas nesse tipo de crime. Sem punição e sem uma educação que combata a violência de gênero, não há solução. E essa educação tem que chegar inclusive aos nossos policiais, juízes e médicos.
No livro você comenta que entrevistou pessoas de diferentes classes sociais e níveis de instrução, mas diante da sua pesquisa, é possível mensurar que mulheres negras e periféricas estão mais vulneráveis a esse tipo de agressão, sem nenhuma reparação do Estado?
Sim. Os dados mostram que mulheres negras e de classes sociais mais baixas são as maiores vítimas de violência sexual. É sempre importante lembrar que os dados correspondem a 10% dos casos registrados. Dá pra gente ter uma noção, mas é sempre importante ressaltar que é apenas um pequeno percentual que temos conhecimento e que o número real de vítimas é muito maior.
Outro caso que ganhou repercussão foi o da socialite britânica Ghislaine Maxwell e seu ex-namorado Jeffrey Epstein, que aliciavam adolescentes para que eles tivessem relação sexual. O que é mais difícil: ouvir os criminosos que não sentem culpa ou mulheres que também contribuem com esse tipo de atrocidade e até mesmo mulheres que culpam as vítimas?
Esse caso mostra como os abusos estão presentes em todas as classes sociais. Realmente é muito triste ver quando mulheres compactuam em abusos contra outras mulheres. Muitas vezes, elas culpam as vítimas por um mecanismo de defesa. Se uma mulher acredita que a culpa está no comportamento da vítima, basta se comportar de uma forma diferente para estar protegida, o que sabemos que não é verdade.
Cada vez mais ouvimos relatos de mulheres que foram abusadas durante anos, como foi o caso do guru de meditação Tadashi Kadomoto. Você acredita que estamos no caminho certo?
Falar sobre o assunto é um passo e é o que busco com esse livro. Precisamos levantar o debate, esclarecer sobre os direitos das vítimas e trazer caminhos sobre como podemos ao menos melhorar essa realidade.
Desde quando nascemos existe a cultura de: se for homem será o dominante, se for mulher será dominada. São papéis aprendidos ainda na infância e repetidos ao longo da vida. Diante do que você passou para realizar este livro, como enxerga esse cenário daqui a 20 anos?
Espero que melhore. Tenho notado cada vez mais as mulheres mais atentas, denunciando mais, apoiando umas às outras, mães mais atentas à criação de meninos e meninas… Sou otimista, acredito que teremos um cenário muito melhor.
Apesar da importância do tema debatido, é quase impossível sair ileso de um trabalho como esse. Como você fazia para que essas histórias não afetassem as suas emoções e voltasse para casa bem?
Tive que voltar para a terapia. Foi muito duro dar de cara com minhas próprias lembranças e perceber como o abuso sexual, ou a ameaça dele, influencia a vida de todas nós, mulheres. Como passamos a vida fugindo de abusadores, o medo constante, a impotência, mesmo diante dos ataques menos graves, dentro do transporte público, por exemplo.
Eu li que você planeja escrever um novo livro, qual será o tema abordado?
Sim. Meu próximo livro será sobre a violência doméstica. Mais uma vez, quero discutir a desigualdade de gênero. Cresci nesse contexto e volta e meia ainda me dou conta de momentos e maneiras diferentes em que fui prejudicada ou vitimada só por ser mulher. Quero ajudar a mudar isso.
foto: Leo Aversa