A história é sempre contada pelo olhar do mais forte e, em Itu, com tantos grandes nomes da memória nacional, temos apenas um punhado de mulheres que sabemos quem foram, como viviam e o que fizeram.
Quando comecei a pensar esse texto estava completamente envolvida na pesquisa das mulheres que, à sombra desses grandes homens, silenciosas e, na maioria das vezes anôminas, cumpriram seu papel e deixaram sua herança, confiando na sabedoria do tempo.
E foram tantas! Índias, caboclas, negras, imigrantes de todos os cantos do mundo, diferentes, cada uma a seu tempo, misturaram-se e pariram uma cidade e uma gente única.
Todas elas, Bartira, Úrsula, Olympia, Nhá Chica, Ignácia, Madre Theodora, Maria de Lourdes, Ignácia, Francesca, Sayuri, Munirah, Mercedes, sobrevivem em nós, ituanas deste século apressado.
Mulheres ancestrais, fortes e destemidas, sustentando a terra e a filharada durante as longas ausências dos homens pelo interior de um país ainda desconhecido.
Decerto que eram fortes, para suportar a lida na roça, cheias das antigas sabedorias para curar dores e parir filhos, saber se vinha sol ou chuva antes de plantar.
Decerto que se apegavam a ancestral de todas as mães, a Virgem, para amparar o sofrimento de um cotidiano árido, vivendo nas bordas da incerteza, cada dia um novo desafio, cada dia uma prece implorando bênçãos e coragem.
Quanto dessas desbravadoras sobrevive em mim? Buscando em minhas origens encontro um pouco de cada uma delas e percebo que as qualidades, virtudes, teimosias, cismas e crenças que as acompanharam ainda persistem e caminham ao meu lado, pelas mesmas ruas antigas que percorreram.
Que mistura peculiar, que distintas as vidas que me engendraram! Uma mulata, das cozinhas de alguma fazenda, as estrangeiras aportadas de além mar para um mundo tórrido e precário, a caipira robusta, de pés bem cravados na terra a ser semeada.
De todas elas, com certa dose de espanto, refaço gestos, recito rezas e sussurro ladainhas, como se o tempo que nos separa fosse tão efêmero como a brasa soprada na lenha do fogão.
Na lembrança mais próxima, as bisavós, uma com seu terço, outra com seu pito, a avó e seus sequilhos e pastéis, cantando para os males espantar, para ninar os pequeninos ou só para amenizar as infindáveis desventuras cotidianas. Teciam bordados finíssimos, escreviam cartas e livros de receitas com letra desenhadas a pena.
De uma guardo o missal, de outra alguns copos de cristal, da avó herdei a habilidade na cozinha, da tia excêntrica o gosto por viagens e, de outra ainda, a paixão pelos livros.
Todas elas sobrevivem nos meus gestos, nos meus passos pelas vielas e largos da cidade, na receita do pastel, nas preces murmuradas e nas mesmas palavras repetidas através dos séculos.
Allie Marie Queiroz integra a Acadil (Academia Ituana de Letras), desenvolve projetos de políticas públicas nas áreas de Educação, Planejamento Urbano, Cultura e Turismo, e escreveu este artigo especialmente para esta edição de Revista Regional que comemora os 402 anos de Itu.
fotos: Reproduções do livro “Memória de Itu”