O que é a arte senão uma abrangente representação metafórica de cada época? O patrimônio artístico é um legado diferenciado, porque nos permite um contato sensível com outro tempo, contato provocativo, crítico e profundo, registrado pelo artista, que dimensiona em sua obra, a expressão de seu olhar alternativo, impressa em cores e formas.
Há quatro séculos assentada nestes campos de Pirapitingui a gente ituana viu surgir expoentes que encontram na arte a forma de desvendar seu universo, de revelar sua cultura, sua crença, suas aflições, sua consciência de mundo. Não é possível falar em arte ituana sem olhar para o patrimônio erigido, fruto de uma sociedade que viveu, entre os séculos XVIII e XIX, um dos mais notórios enriquecimentos econômicos de São Paulo. Temos, hoje, o privilégio de viver em uma cidade na qual a compreensão de todo se faz dinâmica, pela presença marcante de linguagem artística, concebida na motivação interior daqueles que se tornaram intérpretes das contradições de sua realidade, artistas que vivenciaram, em cada tempo, diversos movimentos e tendências culturais. O resultado comovente é o belo entre nós. Havemos de lembrar aqui dos melhores expoentes da nossa arte.
No epílogo do século XVIII ao florescimento do ciclo açucareiro ituano, instalou-se na vila de Itu o mineiro, de Sabará, José Patrício da Silva Manso (1740 – 1801), vindo de São Paulo, contratado pela abastada Maria Francisca Vieira, a fim de decorar o forro da capela mor da igreja matriz, fingir de pedras o retábulo, altares laterais e púlpito, ultimamente construído e dedicado à Virgem Candelária. Ele reproduziu, naquele teto, a cena da apresentação do Menino Jesus a Simeão, no templo de Jerusalém, tendo por figura central a Virgem.
A estética acompanhava os padrões coloniais que, por sua vez, ainda eram consoantes ao Barroco/Rococó europeu. O altar, elegantemente talhado em estilo Joanino, foi coroado com a pintura de um majestoso forro côncavo, que oferece especo mais amplo à cena do templo do velho sacerdote judeu. Silva Manso, conhecido em São Paulo, pelas pinturas em igrejas conventuais, executou em Itu uma bela e expressiva pintura, no período colonial paulista. O medalhão central, cercado de dezenas de elementos decorativos e imagens de santos da Igreja, é inspirado no rococó em declínio. A obra se completa nas paredes, em telas na quais reproduz alguns personagens já dispostos no entablamento. Distingue-se a obra pela qualidade do artista, senhor de poucos e inexpressivos modelos, mas que ofereceu aspectos notórios à exagerada igreja mãe ituana.
O primeiro artista efetivamente da terra, se bem que nascido em Santos, mas completamente radicado em Itu, foi o Padre Jesuíno do Monte Carmelo (1764 – 1819), talvez discípulo de Silva Manso. Sua obra, ancorada no mestre, inspirou-se naquela, mas representou certa concepção de liberdade, que o pintor, compositor, arquiteto e orador vivenciou aqueles interessantes anos de florescimento iluminista em Itu. Mário de Andrade escreveu o primeiro estudo acadêmico jesuínico no qual buscou delinear traços psicossomáticos a fim de compreender esse curioso invencionismo do padre artista.
A obra de Jesuíno teve início na matriz ituana, na década de 1780, segundo Andrade, a partir da composição de seis das 12 telas que ostentam a capela mor, fazendo conjunto com o forro. Os modelos – no forro e nas telas – se repetem, denunciando parceria entre mestre e aprendiz, aquele, autor das superiores, relacionadas à Virgem Maria e este das inferiores, ligadas à vida de Jesus. Sua segunda e mais interessante atividade, no entanto, foi a pintura dos forros e paredes laterais da igreja do Carmo, na qual destaca-se da capela mor: a Virgem aparece sustentando o escapulário, cercada de uma profusão alegríssima de anjos, em esplendor de luz e cores. Ali o autor abandonou o reflexivo barroco colonial a caminho da ruptura de modelos. No Carmo, vê-se com clareza a mudança de intenção de Jesuíno, já que o artista se preocupou em retratar gente viva, anjos com rostos de crianças ituanas, algumas delas amulatadas como ele, todo mundo cercado de notável festão de flores – coisa das quermesses daquele tempo – fruto da tal liberdade que o artista conseguiu dimensionar. Sua pintura anterior, da matriz, é catequética, educativa, para servir à gente iletrada compreender os rigores da fé, é abarrocada, sob os modelos do mestre, enquanto a carmelita é dele e gloriosa, em busca de autonomia, intenção que irá acompanhar o artista até o fim, nas escuras telas do Patrocínio. Estes retratos de santos representavam sua obstinação por imortalizar rostos de gente real, a natureza das pessoas que o cercavam, dos seus parentes, seu mundo.
Jesuíno trabalhou em São Paulo por alguns anos e deixou interessante legados nas igrejas carmelitas. Deixou também discípulos, talvez aparentados seus, entre os quais se destacou Joaquim Januário do Monte Carmelo. Há obras anônimas espalhadas por Itu, que lhes podem ser atribuídas, como que seguindo os modelos jesuínicos, sua escola.
Quando ainda vivia o padre artista, nasceu em Itu Miguel Archanjo Benício da Assunção Dutra (1812 – 1875), filho do ourives Thomaz Dutra. Sem exagero podemos considerá-lo poliédrico, como o chamou Pietro Maria Bardi, dado seu caráter de múltiplo artista e artesão: desenhista, pintor, escultor, decorador, arquiteto, músico, compositor, memorialista e outras tantas e talentosas atividades de um homem que viveu cerca de 40 anos em sua terra. A espontaneidade de sua obra revela-o preocupado em registrar seu tempo, sua cidade, sua gente, os momentos significativos, celebrações, bem como indivíduos, inclusive tipos populares. Interessou-se pelo curioso, pelo inusitado, pela experiência em dominar determinadas técnicas para representar novos assuntos. Utilizou-se na pintura, da aquarela pouco usada no Brasil, mais comum aos viajantes. No dizer de Bardi, Miguelzinho também foi um realista: “redutor de real à sua percepção, nua e crua, a realidade assimilada, sem a mediação de um modo, intuição pura desligada de qualquer convenção”.
Alguns estrangeiros passaram por Itu e registraram a cidade, caso de Jean Baptiste Debret (1768 – 1848) e Hercule Florence (1804 – 1879) viajantes franceses. Outros se instalaram na cidade, como o jesuíta ituano Giovanni Alberani (1830 – 1913), um dos fundadores do Colégio São Luiz, inventor, hábil ourives, porém notabilíssimo na pintura decorativa. Registrou paisagens e imagens religiosas em pontos estratégicos do monumental edifício do colégio; as pinturas murais na sala de visitas lembram o neo-Classicismo tardio, sublimado pela Companhia de Jesus e a seleção de temas da Antiguidade Clássica para sua educação. O Anjo da Guarda, no corredor da grande sala de estudos, é um magnífico exemplo da usança do recurso de trompe-l’oiel, que sugere profundidade à cena. Visto à distância a imagem representa uma escultura clássica, esculpida em mármore. Ainda neste estilo atuou em Itu, Carlo De Servi, conhecido artista italiano, radicado em São Paulo. Trabalhou ao longo de 1904, na decoração interna do Santuário Nacional de Apostolado da Oração. A obra também se distingue pela leveza neo-Clássica da composição e o conjunto de alegorias que compõem a pintura da capela, aproximando os frequentadores à realidade da Roma renascentista.
Também italiana, Lavínia Cereda, em 1878 produziu um conjunto de 14 telas, afixadas no forro da sacristia da Igreja Matriz, muito característica da pintura acadêmica, preocupada em estabelecer cores fortes, que ampliam o dramatismo das cenas; minimizou, entretanto, os acentos de movimento, sugerido pelo estilo. Vivendo em Itu tornou-se a primeira mestra do grande Almeida Júnior.
Um século de arte se passou e a cidade chega à segunda metade do século XIX; foi o momento em que viu surgir à maturidade, em uma das maiores consciências nacionais, o Patrono da Arte Brasileira, José Ferraz de Almeida Júnior (1850 – 1899). Nascido e criado em ambiente extremamente promissor e um aprendiz de artista, pela quantidade e qualidade das obras das igrejas de sua terra, recebeu apoio necessário de Padre Miguel Correa Pacheco, vigário ituano e mecenas das artes, para o despertar de seu estudo acadêmico.
Em 1869 ingressou na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro cujo ensino era fundamentado na escola francesa. Quando retornou, em 1875, passou a viver em Itu, onde instalou atelier e vivia de fazer retratos. A idealização dos modelos sublimava os personagens, salientando sua qualidade morais e funções sociais. Almeida Júnior, como os outros retratistas, atuava como corretor da natureza.
Em sua temática religiosa utilizou-se de expressões faciais que lembram a pintura italiana do século XVII. Representantes desse período: “São Paulo Apóstolo” e “Jesus no Horto”, obra em que incorpora dramaticidade romântica à cena.
Por especial obséquio do Imperador Pedro II, em 1878, matriculou-se na Escola Superior de Belas Artes, em Paris onde foi aluno de Alexandre Cabanel. Neste segundo período de estudos Almeida Júnior desenvolveu a parte mais madura de sua obra, pois se desprendeu do pelo ideal, dos retratos, e ingressou em um novo movimento, de olhar para a realidade vivida, mas pouco valorizada, como Coubert a via na França. Ao retornar definitivamente ao Brasil instalou-se em São Paulo e se dedicou a pintar cenas da vida burguesa e costumas paulistas. Aqui viu melhor e dilatou seu olhar para o mundo real, para sua gente, no convívio com ela, lembrando-se da tranquilidade atraente de Itu, do falar, dos causos, da natureza pródiga, do modo de vida despretensioso de seu tempo, meio urbano, meio rural; sentiu motivação para valorizar este universo como tema central em sua obra: os personagens chamados pelos citadinos por caipiras. É o salto de qualidade em Almeida Júnior, absolutamente inspirado em sua história ituana, no convívio com sua gente. Se sua terra não foi depositária de obras da temática caipira, foi fonte inspiração e lugar ideal para retratar o real que o artista viu, a realidade não desejada, mas vivida. Abriu caminho para que os modernistas de 1922 pudessem mergulhar à procura de um Brasil verdadeiro. Notáveis são “Caipira picando fumo”, “O violeiro”, “Amolação interrompida” e “Nhá Chica”.
Seu aluno, Jonas de Barros (1875 – 1939), ituano, inspirado na leitura aguda de Almeida Júnior, concedeu, em 1900, “Caipira Pitando”, que permanece no Espaço Cultural Almeida Júnior, como que imortalizando o momento magnífico da arte ituana, na qual, olhando de dentro, nunca se viu com tanta coragem os traços da cultura local que permanece viva.
texto Luís Roberto de Francisco
fotos Livro Memória de Itu/Arquivo Museu da Música Itu