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Post: Nando Bolognesi: uma potência criativa

Nando Bolognesi: uma potência criativa

– O ituano no personagem de palhaço num de seus espetáculos

Para o ator e palhaço ituano Nando Bolognesi, ao contar histórias, há marcos que norteiam as narrativas. Seu marco atual é transformar os limites da esclerose múltipla em arte e potencializar em cena ainda mais o seu trabalho

Ao ser diagnóstico com esclerose múltipla aos 21 anos de idade, em meio a uma viagem de um ano pela Europa, com toda a energia e garra de um ator em aprendizado, Nando Bolognesi não tinha noção do que vinha pela frente.

Após 30 anos, algumas sequelas, sonhos deixados de lado – como, por exemplo, jogar futebol e correr 10 km antes do treino de remo – e bons espetáculos teatrais concretizados, o ator entende que, apesar da esclerose ser uma doença que o portador jamais sabe exatamente o que vai acontecer, o fez tornar seus limites uma potência criativa e não um obstáculo.

Neste bate-papo com a Revista Regional, Nando contou um pouco da sua trajetória de ator e do seu processo de acessibilidade criativa, que é como consegue transformar os limites em resultados em cena e fazer com que as pessoas vejam seus espetáculos e gostem, mas além da experiência pessoal que narra.

REVISTA REGIONAL: Aos 21 anos, recém-formado, com muitos planos na cabeça e um diagnóstico de esclerose múltipla. Como isso guiou a sua vida?

NANDO BOLOGNESI: Eu simplesmente não entendi muito bem. Hoje quando falamos em esclerose múltipla, parece que sabemos um pouco mais, que tem mais informação. Há 30 anos, quando recebi o diagnóstico, eu não fazia ideia do que significava e nem o que era de verdade. Sabia apenas que era uma doença que se manifestava em formas de crises como a que tinha tido. Não sabia se teria outras crises ou não e, segundo os médicos, caso tivesse, era apenas tomar um remédio à base de cortisona. Pensei, ok, está bom. Para mim, era quase banal. Não foi um marco na minha vida. Era apenas ter uma doença e tomar um remédio que estava tudo certo. Voltei para a minha viagem e segui a vida.

E quando foi que a ficha caiu?

A ficha foi caindo aos poucos. Voltei para o Brasil, tive outros surtos, que começaram a não ser tão esporádicos. Com o tempo fui percebendo que após a cada crise, não voltava a ser como era antes, voltava pior. Aí fui descobrindo, na prática, que havia sequelas. Não teve aquele momento de novela mexicana de a partir de agora minha vida mudou, foi um processo lento e gradual, em que fui entendendo as consequências da esclerose múltipla conforme o tempo ia passando e as crises aconteciam. O momento em que foi um marco de ‘uau, não é tão simples assim’ ou a ‘doença vai impactar a minha vida pra caramba’, foi um dia em que fui jogar bola – adorava jogar e fazia muito bem – com uns 22 ou 23 anos. Cheguei em casa da partida, coloquei um vinil da Elis Regina e comecei a ter pensamentos sobre a minha atuação na partida, que estava piorando e que podia

chegar um momento da vida em que não jogaria bola nunca mais. E chegou. Para mim, isso era algo absurdo, pois era uma das coisas que mais gostava de fazer. Apenas pensava que era muito novo e jamais conseguiria jogar futebol.

E como foi lidar com isso?

Foi um momento em que pensava que estava em um pesadelo e que acordaria a qualquer instante. Foi o único momento em que posso identificar como o de a ficha de ter caído e pensei: isso não é legal. Neste momento comecei a chorar e estava tocando “Maria Maria”. Os versos cantados fortemente pela Elis Regina “… mas é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre…” fez com que o meu choro, antes de desespero, se transformasse em força, incentivo, determinação para enfrentar. Foi um momento de virada, porque tudo foi de repente e sem saber o que vinha pela frente. Até hoje o avanço da esclerose não é previsível. É muito de caso pra caso. Tem gente que sente dor, eu não tive, tem gente que em cinco anos está na cama, tem gente que tem três surtos e não tem mais. Não tem como projetar perspectivamente, como por exemplo, quando eu tiver 40 anos estarei na cadeira de rodas ou estarei bom. Eu não sei. Meu espetáculo é uma ficha que não para de cair, porque as coisas vão acontecendo.

Quando você desistiu da Economia (Nando é formado em Economia pela USP) e decidiu virar palhaço? A doença foi decisiva nesta decisão?

Quando contamos a nossa história, colocamos uns marcos para nortear a narrativa. Antes da esclerose resolvi não trabalhar com economia e ser artista. Foi no mesmo ano em que tive o meu primeiro surto que me fez procurar um médico e ter o diagnóstico. Era 1990, tinha acabado de me formar, estava viajando e decidi que não trabalharia com Economia e nem daria aula de História – também sou formado em História. Tive uma crise existencial, estava viajando sozinho por um ano fora do Brasil, tinha um olhar de estranhamento para tudo, afinal estava em outro país, longe dos amigos, falando outro idioma. Durante os três meses em que fiquei em Londres, trabalhava em uma joalheria, ia todo dia para o trabalho no metrô e questionava para mim mesmo o comportamento das pessoas no metrô. Achava que elas não estavam lendo, apenas que faziam de conta para não conversarem com as outras e não olhá-las. Tinha a sensação de que as pessoas não eram felizes. Estava cansado com o trabalho tedioso, achava que o mundo tinha tomado um caminho errado, que todo mundo era infeliz. Caiu a ficha que eu não queria trabalhar com Economia e passar a vida em um banco. Antes achava que quem consegue usufruir de todas as benéficas da vida e não ficar escravo disso são os artistas – hoje já não acho mais – então quis ser artista. O problema era o que fazer, pois era péssimo cantando, na aula de violão não consegui passar da ‘Asa Branca’, então decidi fazer teatro.

Quando saí de Londres para ir para Torino, fiz a viagem de trem e estava lendo a peça do Maquiavel. Um ator estava viajando também, me viu lendo e puxou conversa. Contei que estava indo para Torino fazer um estágio, mas queria ser ator. Ele morava na mesma cidade e ia começar um curso de ator em dez dias. E ele tinha um amigo que precisava de alguém para alugar o apartamento dele. Tudo se encaixou e deu certo. Durante esse curso de teatro, eu tive os surtos derradeiros que me fizeram voltar para o Brasil. Voltei para cá, recebi o diagnóstico, não dei muita bola e não encanei muito. Voltei para a minha viagem e, quando voltei definitivamente para cá, fui procurar

escolas de teatro. Indicaram-me, na época, a Escola de Arte Dramática de São Paulo (EAD) e fui fazer.

Na sua vida, você associa a arte à esclerose múltipla?

Comecei a buscar mais informações e descobri que era uma doença autoimune e comecei a achar que eu era o responsável direto. Achei que eu que me atacava, que vivia em desarmonia comigo mesmo e que a doença era a afirmação de que eu não estava bem com a minha vida, minhas decisões e meus projetos. Fiz uma série de mudanças, já estava na EAD e estava encantado com o teatro. No último semestre tinha a oficina de palhaço e foi quando me encantei e apaixonei. Faço a associação da esclerose com o palhaço porque comecei a ter dificuldades para fazer o meu trabalho de ator porque eu tinha dois ou três surtos por ano e cada um deles deixou sequelas. Comecei a ter dificuldade para caminhar e tive muito comprometimento do meu desempenho físico.

Estava na EAD ainda e o Celso Frateschi, que era meu professor, estava montando uma tragédia grega e chamou alguns alunos para participar. Nesse espetáculo foi a primeira vez que falei: talvez não consiga. Ia levando a vida, pois não sabia até onde a esclerose ia me comprometer e fazendo o espetáculo, um dia caí em cena. Pensei que apesar de não estar dando tanta importância para a doença, talvez ela fosse mais complicada do que pensava. Conforme o tempo passava, percebi que tinha muita dificuldade física para o trabalho de ator. Confrontei-me com isso. Depois teve um outro espetáculo, com o José Rubens Siqueira, que tinha muita troca e precisava de muita agilidade para ir rápido de um lugar para outro. Ele fez toda uma construção que eu não precisava mudar tanto de lugar. Eu só pensava: está difícil. Foi aí que entrou o palhaço. Estava muito restrito às possibilidades de ator, achando que faria apenas personagens que andam devagar e quando veio o encantamento pela linguagem do palhaço, pensei: tropeçar, cair, andar meio torto, ser desengonçado faz parte da caracterização. As pessoas achavam que era uma proposta minha, que não era uma condição real. Com o palhaço, era possível ser ator e juntou a fome com a vontade de comer. O que mais tem a ver com a esclerose foi o palhaço, mas desconfio que seguiria o mesmo rumo, pois me encantei demais com a linguagem. Virou um mote para mim, pois muitas vezes, o problema é a solução, pois para a dramaturgia do palhaço, tudo que ele precisa é de um problema. Toda a cena de um palhaço é um problema, uma inadequação.

Isso mudou a sua visão da vida?

Às vezes, eu fico em dúvida. Olhando para a minha trajetória, a esclerose múltipla não me ensinou nada, ela me revelou o que eu realmente era. Deu-me oportunidades de vivenciar coisas que já eram minhas. Fui me conhecendo por meio dela. Uma das coisas que depois de muito tempo analiso, é a tranquilidade com que recebi a notícia, o modo como reagia. Nunca fui um herói e tive momentos que chorei, fiquei triste e foi uma barra muito pesada, mas de um modo geral, olho para a minha trajetória, me surpreendo. Um dos sintomas clássicos da doença é a depressão e eu nunca tive. Para mim, tudo está relacionado ao trabalho do palhaço e eu acho que a pré-disposição de não me levar a sério, de rir de mim mesmo, de tentar ser efetivo e não ser. A melhor cena do palhaço e

que o público vai amar é aquela que você faz tudo errado, que te desobriga da efetividade. E isso tem a ver com o modo como eu lidei e ligo até hoje com a esclerose.

Nando Bolognesi num de seus espetáculos: “acessibilidade criativa”

O que tem a ver com a esclerose?

Passei a ter um sentimento verdadeiro de gratidão por estar vivo. Acho que isso tem totalmente a ver com a esclerose porque a gente nunca sabe como vai ser o outro dia. Antes reclamava que depois de correr estava tropeçando muito, depois reclamava que estava jogando mal, como se não desse valor ao que tinha e conseguia fazer. A partir disso comecei a valorizar as coisas que eu tenho agora. Comecei a notar que a existência é algo fantástico, que estar aqui agora é algo tão improvável, mas estou e vivo. A urgência em aproveitar tudo que a vida me proporciona também está ligada à esclerose e me fez ver o olhar que eu tenho que viver agora. Para mim morreu, acabou. Tenho que aproveitar aqui e agora. Não vou ficar aqui brigando com o outro, reclamando da vida. Vou viver e isso me dá disposição e gratidão. A urgência em viver passou a me nortear, mas não é algo que me deixa ansioso, me faz valorizar cada instante.

Quando você decidiu escrever o livro, qual era o seu objetivo? Apenas contar a sua história ou que ela fosse incentivo para alguém?

Nunca tive a motivação de fazer algo com a linguagem de autoajuda. Em nenhum momento me identifiquei com a comunidade de portadores de esclerose múltipla. Até procurei uma associação, mas me incomodei porque não queria que fosse a minha forma de autoidentificação. A questão do livro é porque sempre gostei de escrever. Tenho um amigo que tem uma editora e me incentivou. Segundo ele, sempre tive uma maneira divertida de levar as coisas. Como demorei para escrever, ele fez um contrato com um prazo determinado para entregar o conteúdo, aí escrevi.

Mas você tem noção que as pessoas são incentivadas pelo seu trabalho? Que tanto o livro quanto a peça as motivam a seguir em frente mesmo com problemas?

Cronologicamente, o livro – “Um Palhaço na Boca de um Vulcão” – aconteceu ao mesmo tempo em que o espetáculo e nenhum tinha essa motivação. Depois de prontos, entendi que tinha essa potência. Mas não foi um desejo ou algo que me norteou e só depois de pronto percebi. O espetáculo – “Se Fosse Fácil Não Teria Graça” – é muito claro que tem esta função de incentivo. É paradoxal, porque é muito legal quando acaba a peça e as pessoas compram o livro, conversam comigo e sempre deixam depoimentos muito fortes de como ajudou a mudar a vida delas. É algo muito legal, que mexe comigo, me deixa muito feliz e grato. Mas, ao mesmo tempo em que me gratifica, por outro lado me angustia poder achar que o meu espetáculo é recebido ou aprovado só por conta do conteúdo que tem a ver com a compaixão. Então, uma das minhas pesquisas informais chamei de acessibilidade criativa, que é como consigo transformar os meus limites em uma potência criativa, que fará com que as pessoas vejam o espetáculo e gostem para além da experiência pessoal que eu conto na peça.

Quais as suas experiências recentes com acessibilidade criativa?

Tem um espetáculo de circo chamado “Obstáculos”, em que todos os artistas são portadores de deficiência física – mais de 20 pessoas de várias companhias teatrais, mais ou menos – e eu sou o palhaço. Nós nos juntamos para fazer exclusivamente esta

apresentação, que foi feita em 2018, no Festival Internacional de Circo e no mês passado (julho), em São Paulo. Também fiz dois espetáculos com os Parlapatões, “O Rei da Vela” e “A Cabeça de Yorick”. Os dois de cadeira de rodas. Eram espetáculos que não tinham nada a ver com a minha história e gostei muito de fazer. Estar na cadeira de rodas era secundário, quem estava em cena era o ator, que estava sentado apenas por não conseguir andar. Isso me deixou instigado de como consegui continuar fazendo o meu trabalho, além da minha história pessoal.

No “Obstáculos”, que faço com vários deficientes, eu caminho bastante. Comentei com o diretor que gostaria de incorporar nas minhas caminhadas, a minha dificuldade em andar. Não quero que ela seja um ruído na minha cena, mas sim uma proposta formal e estética: se estender a lentidão da marcha em caminhar em todos os meus gestos, incorporar a minha lentidão em uma proposta estética e artística, pois sairia desse lugar da superação e deixaria aquilo de apesar da dificuldade de caminhar ele faz. Estou nesta busca de como incorporar minhas limitações e deixar de tratá-las como obstáculos a serem superados. Tem muito artista deficiente que já faz isso e faz ultrapassar o sentimento da compaixão. É um sentimento incrível e que a humanidade precisa, mas como artista não é o que eu quero. Não sou ingrato, mas o que me move é a minha expressão artística.

Você passa a sensação de estar sempre além e que a acessibilidade criativa é também uma forma de se superar e fazer algo diferente.

Como a esclerose é uma doença que você não sabe o que vai acontecer e as coisas vão avançando, acho que a busca de tornar os limites uma potência criativa e não um obstáculo é algo que vai me acompanhar sempre. Os limites vão mudando e você sempre vai buscar algo além. Teatro é expressão artística.

O “Se Fosse Fácil Não Teria Graça” tem continuidade?

Por conta desta acessibilidade criativa, decidi fazer uma trilogia. O “Se Fosse Fácil Não Teria Graça” foi o primeiro, depois o “Legítima Defesa” – que ganhei o Programa de Ação Cultural (Proac) para escrever o texto e estou atrás de verba para levantar a produção do espetáculo. Já fiz uma leitura pública do texto em Itu e em meados de agosto passado fiz outra, em São Paulo, quando fiz o lançamento do livro. Também tem o espetáculo do meu palhaço – que seria a minha trajetória nesta busca da incorporação do meu limite como potência criativa. O primeiro foi a temática, o “Legítima Defesa” já tem outra coisa, mas ainda estou respeitando a minha limitação física, pois farei sentado e com pouca motivação. Já o terceiro, do palhaço, levarei isso para o corpo. Projetei mentalmente que tudo isso seria o meu percurso nesta pesquisa da acessibilidade criativa. Agora estou no segundo passo. Sempre estou buscando algo que possa seguir profissionalmente. Já tenho 51 anos e conseguir a acessibilidade criativa pode ser um bom tema para conseguir patrocínio e editais.

E como é correr atrás de patrocínio nos dias atuais?

Fico atrás de editais e de patrocinadores pela Lei Rouanet. Todo ano há leis aprovadas para conseguirmos irmos atrás de patrocínio. Vivemos de edital e Lei Rouanet, há mais de 20 anos. Infelizmente, patrocínio direito, empresas que chegam lá e bancam, não

conheço. Quando não é a Lei Rouanet, você consegue verba com os editais de cultura. Enquanto ainda temos tal recuso, corremos atrás.

(entrevista/texto: Aline Queiroz)

fotos: João Caldas

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