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A arte da restauração

Parte da Matriz da Candelária, que passou recentemente por restauração

Mais do que um processo longo e trabalhoso, a restauração é uma arte. Não há como ser fácil a tarefa de trazer de volta os aspectos originais de uma peça ou de um ambiente. Requer conhecimento, estudo e talento acima de qualquer coisa. Tanto que ainda são poucos os profissionais que desenvolvem esse trabalho no Brasil, se comparado com países europeus, por exemplo, onde a prática é mais antiga e constante. Aqui os restauros se tornaram mais comuns a partir da década de 1970, como especula a artista plástica ituana Nancy Carpi.

Especialista em pintura de óleo sobre tela e uma retratista de mão cheia, também já realizou uma série de restaurações em diversos cantos da cidade. O mais recente foi um crucifixo da Madre Theodora, pertencente ao museu das freiras da Igreja Nossa Senhora do Patrocínio, em Itu. “O crucifixo já tinha passado por uma série de intervenções e uma das mãos estava quebrada. Eu não tinha muito que fazer, pois senão ele perderia sua originalidade. Então idealizei que seria interessante folhear as partes danificadas com ouro”, revelou.

Isso mostra que a forma como cada restauração é feita depende do profissional que desenvolve o trabalho. Geralmente, o restaurador é contratado para melhorar o objeto, permitindo que ele perdure por mais tempo e não necessariamente para deixá-lo como era no início, quando foi criado. Assim, fica a critério do artista escolher o tipo de reparo que será aplicado. Há quem goste de deixar sua própria marca no objeto, há quem opte por retirar de uma vez por todas a parte danificada e também quem fique preso aos traços originais. São várias as possibilidades, mas todas elas têm algo em comum: a etapa inicial.

Independentemente das técnicas usadas por cada restaurador, a limpeza é sempre o primeiro passo a ser tomado. Principalmente quando se trata de peças antigas. No caso de Nancy, esta fase foi a mais trabalhosa em quase todas as recuperações que promoveu. Tanto no processo do crucifixo quanto no que o antecedeu, que foi o restauro das portadas da Igreja Nossa Senhora da Candelária (Matriz), a artista plástica se deparou com uma situação de verdadeira deterioração, ainda mais em seus interiores. O crucifixo tinha uma estrutura de madeira e estava repleto de bichos, enquanto as portadas, que eram oito no total, estavam cheias de cupim. Somente uma delas estava intacta. O resto só dispunha do batente original.

Para este segundo projeto, a artista plástica contou com a ajuda de uma grande equipe. As portadas foram todas retiradas para poderem ser mexidas. A estrutura de muitas delas tiveram que ser trocadas, justamente por estarem em más condições. Quando começou a mexer na pintura, Nancy percebeu que havia duas ou três camadas de tinta, pois antigamente não se pintava as igrejas com muita frequência. “Diferente do crucifixo, ali eu tinha uma referência, pois uma das portadas ainda guardava seus traços iniciais”, lembrou. Depois de limpar, reestruturar e pintar as portadas, ela ainda cobriu o entorno de cada uma delas com pequenas e delicadas folhas de ouro, que poderiam se dissolver a qualquer descuido. Mas a delicadeza de Nancy foi superior.

Com o cuidado e a paciência que um trabalho como esse necessita, a restauradora conseguiu alcançar o resultado que esperava. Nas extremidades onde o ouro não foi suficiente, uma pintura em tom de amarelo faz o mesmo efeito, quase que imperceptível aos olhos dos fieis que frequentam a igreja. Foi também com essa sutileza que a artista plástica recuperou uma tela que retratava a figura de Dom Gabriel. “Ela estava com um rasgo em formato de L, difícil de ser recuperado. Isso porque eu não trabalho com a tecelagem, como muitos restauradores fazem”, adiantou. Diante disso, teve que procurar outro modo de fazer a recuperação. E ficou mais do que satisfeita quando terminou. “Eu perguntava para todos os amigos que frequentavam minha casa se eles sabiam apontar o local afetado pelo rasgo. Acredite, ninguém acertou”, compartilhou, toda feliz.

Outro trabalho do qual Nancy se orgulha de ter feito é a restauração dos painéis da sala do comandante do Quartel de Itu. Ao todo são quatro pinturas enormes que estampam as paredes do escritório, das quais duas estavam bastante deterioradas. São obras do frei Giovanni Maria Alberani, artista italiano que participou da fundação do antigo colégio São Luiz, que ficava nas dependências do Regimento Deodoro e era administrado por jesuítas. Uma raridade do século XIX. “Infelizmente não havia nem resquícios das obras originais nestes dois painéis, pois já tinham sido feitas muitas intervenções”, comentou. “Ainda existia um buraco em um deles, que tivemos que cimentar e fechar com massa corrida, para somente depois começar a mexer”.

Com base nas pinturas que se encontravam em melhor estado de conservação, a restauradora deu início a um rápido processo de recuperação das obras, recriando as imagens de acordo com o que via nas outras. “Eu tive pouco tempo para fazer tudo, então não consegui pesquisar muito. Até porque ninguém tinha nenhum registro de como eram os murais antes de terem sido modificados. Diante das possibilidades, tive que idealizar algo que mais se aproximasse à realidade”, detalhou. Neste momento, Nancy lembrou que a pesquisa e a contextualização dos objetos a serem restaurados são quesitos fundamentais para que um trabalho seja bem feito. Quem sabe disso é o engenheiro Raul de Souza Almeida, um apaixonado por patrimônios que atualmente coordena um grande projeto de restauro voltado para adolescentes ituanos que vivem em situações de risco social.

O Poeao (Projeto Oficina Escola de Artes e Ofícios) foi criado no ano de 2006 com o objetivo de capacitar esses jovens através de serviços socioassistenciais e de uma proposição pedagógica, visando o preparo de sua inclusão produtiva e, consequentemente, possibilitando a geração de uma renda. O direcionamento é todo feito ao mercado de trabalho da construção civil (carpintaria, marcenaria, pintura e alvenaria) com foco na restauração, preservação e revitalização do patrimônio histórico-cultural do município. E tem trabalho para muita gente. Só em Itu são 235 imóveis tombados pelos órgãos de preservação, além de 32 fazendas que datam dos séculos XVIII e XIX.

A ideia é que os alunos possam colocar em prática o que aprendem em sala de aula. Preferencialmente atuando nesses patrimônios. O projeto já existe no papel e deve ser aprovado em breve. Até agora, os assistidos já realizaram uma série de trabalhos de restauro, começando pela sede do Poeao. “Começamos com calma. Não adianta querer arrumar o mundo lá fora se nossa casa não estiver em ordem”, justificou Raul. E já foi um aprendizado e tanto, uma vez que as oficinas são feitas em um prédio bastante antigo da cidade, que atualmente abriga a Guarda Civil Municipal. Com a ajuda do estagiário Antonio Rodrigues de Souza Filho, que participa desde o início como um habilidoso instrutor de carpintaria, os meninos recuperaram portas e janelas do prédio, que estavam completamente danificadas pela ação do tempo.

Também reformaram os armários da cozinha, onde são feitas as refeições que recebem diariamente enquanto fazem uma pausa nos estudos, já que passam um período inteiro no local. Se antes de participarem do projeto esses meninos saíam das escolas e ficavam vulneráveis à marginalidade das ruas, agora eles têm a oportunidade de aprender uma profissão e vislumbrar um futuro promissor. Para tanto, contam com aulas de informática, lecionadas por um aluno da Fatec, uma das maiores parceiras do projeto –que inclusive ajudou na coordenação e estruturação do curso, com suporte técnico e mão de obra. O curso tem duração de dois anos, tempo bastante para que possam aprender as mais variadas disciplinas, desde teóricas até as práticas, que são separadas por módulos. E eles adoram. Sob o olhar atento de Antonio, os alunos desenvolvem sua criatividade, elaboram pequenos projetos e até ajudam o professor a criar suas próprias ferramentas. Tudo com a maior boa vontade e capricho, quesitos básicos para um restaurador, como bem reforçou Nancy Carpi.

Enquanto se preparam para colocar as mãos à obra em prol do patrimônio histórico-cultural ituano, os jovens do projeto vão realizando trabalhos menores, porém bastante significativos. O de maior destaque pode ser considerado o de restauro das imagens da Igreja São Luiz Gonzaga. As telas retratam os passos de Jesus Cristo a caminho do calvário e foram pintadas no século XIX. Uma bela maneira de se inserir neste grandioso universo da restauração. Por se tratar de uma entidade sem fins lucrativos, firmada a partir de um convênio entre o Comtur (Conselho Municipal de Cultura e Turismo de Itu) e a Prefeitura de Santana de Parnaíba, onde o trabalho já era realizado anteriormente, o Poeao depende de doações para sobreviver. Portanto, para aqueles que acreditam na recuperação do patrimônio ituano, bem como na oportunidade dada a esses jovens, mais informações podem ser obtidas na sede do projeto, que fica na rua Madre Maria Basília, 64 , Centro de Itu.

texto Caroline Rizzi

foto Rapha Bathe


 

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