O amor saudável não prende — ele impulsiona. Talvez essa seja a maior prova de amor que podemos oferecer: sermos parceiros da saúde mental de quem escolhemos amar

No Dia dos Namorados, quando o amor toma conta das vitrines, das redes sociais e dos comerciais de TV, é fácil esquecer que os relacionamentos vão muito além do romantismo idealizado. Eles mexem com o que temos de mais profundo: nossa saúde mental. Mais do que flores, jantares ou presentes, o que está em jogo é o equilíbrio emocional de milhões de pessoas que vivem — ou desejam viver — uma relação afetiva.
“A relação amorosa tem potencial terapêutico, mas também pode ser fonte de sofrimento psíquico intenso”, afirma a psicanalista e professora da USP, Dra. Helena Vianna. “Vínculos amorosos mobilizam emoções primitivas como medo de abandono, desejo de aceitação e insegurança. Amar é, em alguma medida, se colocar em risco.”
Apesar das possíveis armadilhas, o amor também pode ser um refúgio emocional poderoso. Diversos estudos apontam que estar em um relacionamento estável e respeitoso melhora indicadores de saúde mental, reduz o estresse, equilibra a produção de hormônios e aumenta até a expectativa de vida.
“Relacionamentos afetivos saudáveis oferecem suporte emocional, segurança e senso de pertencimento”, explica o psiquiatra Dr. Rafael Gomes, do Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP. “Esses fatores contribuem diretamente para uma melhor regulação emocional, o que diminui a incidência de quadros como ansiedade, depressão e insônia.”
Estar com alguém com quem se pode ser autêntico — sem medo de julgamento — ajuda na construção da autoestima e da resiliência emocional. Pequenos gestos do dia a dia, como uma escuta atenta ou o simples “estou aqui pra você”, têm efeitos neuroquímicos comprovados, como o aumento da ocitocina, conhecida como o hormônio do afeto.
A armadilha da paixão
Por outro lado, o amor mal compreendido — ou idealizado em excesso — pode se tornar tóxico. A fase da paixão, embora intensa e deliciosa, também é um estado alterado do cérebro. “A paixão gera descargas de dopamina semelhantes às de uma droga. A pessoa fica eufórica, ansiosa, e muitas vezes perde a capacidade de avaliar riscos ou limites”, explica Helena.
Essa intensidade pode levar à idealização do outro e à construção de expectativas irreais. Quando a paixão se transforma em dependência emocional, surgem comportamentos destrutivos: ciúmes excessivos, controle, medo constante de abandono e uma sensação de vazio quando o outro não está por perto.
“O ciúme, quando patológico, não é sinal de amor, mas de insegurança profunda”, alerta Rafael. “Casais que vivem essa dinâmica muitas vezes normalizam o sofrimento, acreditando que ele é parte natural do amor. Isso é perigoso e pode se transformar em um padrão relacional doentio.”
Relacionamentos abusivos são o extremo dessa distorção amorosa. O que começa com pequenas críticas, controle sobre roupas ou amizades, muitas vezes evolui para isolamento, manipulação psicológica e, em casos mais graves, violência física. E isso pode acontecer com qualquer pessoa, de qualquer gênero ou classe social.
“O mais perigoso do abuso é que, em muitos casos, ele vem disfarçado de afeto”, afirma Helena. Frases como “faço isso porque me importo com você” ou “ninguém mais te ama como eu” podem mascarar uma tentativa de dominação. Quando a vítima percebe, já está emocionalmente fragilizada, com baixa autoestima e dificuldade de sair da relação.
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que em 2024 mais de 60% das mulheres vítimas de violência relacional afirmaram ter sofrido agressões dentro de casa, de parceiros ou ex-parceiros. Mas o impacto vai além da violência física: muitas desenvolvem transtornos de ansiedade, depressão, distúrbios alimentares e até ideias suicidas.
Amor-próprio: a base de tudo
Diante de tantos riscos e recompensas, qual o segredo de um amor saudável? A resposta, segundo especialistas, começa antes mesmo de encontrar um parceiro: passa pelo autoconhecimento. “Relacionamentos saudáveis não são construídos apenas com compatibilidade ou química, mas com maturidade emocional”, diz Rafael. “Saber quem você é, o que tolera, o que precisa e o que está disposto a oferecer é o ponto de partida.”
Amor próprio não é egoísmo — é pré-requisito para amar com equilíbrio. Quem se ama não aceita migalhas emocionais. Quem se conhece, impõe limites claros. Quem tem autoestima, não confunde controle com carinho nem ausência com liberdade. Embora o amor tenha esse poder de acolher e transformar, ele não substitui terapia, não resolve traumas e não é responsável por completar ninguém. Essa ideia — muito reforçada por filmes, músicas e redes sociais — de que “o outro é minha metade” precisa ser repensada. “Relacionamentos são encontros entre dois mundos inteiros, não duas metades carentes”, resume Helena. “O amor maduro não quer preencher buracos, mas transbordar.”
Neste Dia dos Namorados, mais do que presentear, vale refletir: sua relação atual (ou a que você deseja) contribui para sua saúde mental — ou a compromete? Amar é bom. Mas amar bem é melhor. Se o amor faz bem, ele não sufoca. Ele escuta, apoia, respeita. O amor saudável não prende — ele impulsiona. E, talvez, essa seja a maior prova de amor que podemos oferecer: sermos parceiros da saúde mental de quem escolhemos amar.
foto: AdobeStock