Um dos maiores ícones da TV e do cinema nacional, Zezé Motta, aos 77 anos, fala à Regional sobre carreira, sua luta contra o preconceito e a maternidade
Admirada e aplaudida, Zezé Motta é um ícone da cultura nacional, com carreira consagrada no cinema, no teatro, na TV e na música. Importante para o movimento negro no Brasil, aos 77 anos, ela segue trilhando seu caminho contra o machismo e o preconceito, pela liberdade e igualdade, e tem consciência da importância de preservar a cultura negra no país. Nesta entrevista exclusiva, Zezé fala sobre os projetos em que está envolvida; recorda uma das personagens mais emblemáticas do cinema brasileiro, a Xica da Silva; reflete sobre sua infância ao lado de sua família; e, consequentemente, sobre a maternidade. Aqui, você conhece não só essa mulher incrível, mas aprende com ela o que é ter resiliência.
REVISTA REGIONAL: Zezé, vamos começar abordando o “Falas da Vida”. A senhora diria que apresentar este programa mudou sua forma de enxergar a vida? O que aprendeu acompanhando as várias histórias e experiências que foram apresentadas ao longo do programa?
ZEZÉ MOTTA: Ter recebido este convite para apresentar um projeto tão especial como o “Falas da Vida”, na TV Globo, foi uma honra e uma alegria. Não necessariamente me fez enxergar a vida de outra maneira, pois quando você possui certa idade, que é o meu caso, de tudo um pouco você já vivenciou, claro que as histórias mostradas ali foram inspiradoras, pessoas com 80, 90 anos, de bem com a vida, ativas e com sede de viver mais. Ter participado deste programa só me confirmou que viver é bom demais.
É inevitável não falar sobre Xica da Silva (1976), uma personagem histórica que será lembrada daqui a um ou dois séculos. Após todos esses anos quais são os reflexos que essa personagem ainda tem na sua vida? De que maneira ela te influencia a viver o dia de hoje? Xica era uma mulher à frente do seu tempo, revolucionária, eu diria, mas qual o seu olhar para essa figura?
Fazer Xica da Silva foi um divisor de águas na minha vida, eu conhecia apenas três países, tinha ido com o teatro Arena, do Augusto Boal, viajamos com ele para os EUA, México e Peru, fazendo Arena Conta Zumbi e Arena Conta Bolívar. Depois de Xica da Silva, conheci 16 países e os que eu conheci com o Boal eu tive que voltar para divulgar o filme. O que ela ainda tem na minha vida? Olha, na época quando me chamavam de Xica na rua, eu pensava: “Meu Deus! Quando vão me reconhecer como a Zezé Motta?” Depois, comecei a pensar: “Quer saber? Essa mulher mudou minha vida, foi minha fada madrinha. Por que estou reclamando?” Eu sinto que tenho a força da mulher Xica, a coragem que ela tinha. Viver de arte no Brasil é para quem tem força e coragem. Quando fui apontada como símbolo sexual, confesso que me senti de alma lavada. Na época, saiu numa revista que a atriz que havia passado no teste era “feia, porém exuberante”. Eu me olhava na foto e me sentia tão linda, sabe? Mas, infelizmente, é assim que a banda toca… O meu olhar para essa mulher é de admiração, respeito e gratidão.
Mês das mães, vamos falar sobre maternidade. Mesmo não gerando a senhora encontrou uma maneira de realizar o sonho de ser mãe. No que a maternidade contribuiu para o seu crescimento como mulher e ser humano? Quais foram os lugares e sentimentos que visitou depois da chegada dos seus filhos e agora netos?
Infelizmente eu não consegui gerar, mas tive quatro filhos, e me orgulho bastante. Luciana, Carla, Cintia e Robson. Eu nem lembro que não gerei, sabe? São meus filhos. A convivência com essas meninas e o menino, com pessoas, te ensina muita coisa, principalmente a se doar, a ceder, a cuidar… A chegada dos filhos e dos netos me trouxe uma nova família, este é o melhor lugar…
Em que tipo de mundo a senhora gostaria que os seus netos crescessem? A senhora acha que daqui a uns 20, 30 anos, o racismo deixará de existir?
Eu vivia nos anos 1980 (quando fundamos o Movimento Negro) sonhando que estava preparando um mundo melhor para minhas filhas e netos. Só que não foi bem assim que aconteceu, né? A diferença é que antigamente o racismo era velado, hoje ele está aí, escancarado para todo mundo ver. Algumas coisas mudaram, evoluíram, mas ainda temos muita luta pela frente. Enquanto houver uma Maria, um José, um Matheus sofrendo alguma discriminação eu carregarei a bandeira de combate à intolerância racial. Infelizmente, o nosso amado Brasil é o país da discriminação. Aqui temos preconceito contra tudo: raça, religião, orientação sexual. Infelizmente, nos últimos dois anos, o racismo no Brasil se agravou muito. É muito triste ver esse retrocesso. Não consigo imaginar daqui a uns 20, 30 anos, mas quem sabe 50 anos… Ao longo da minha vida passei por muitas situações de racismo declarado, hoje, Graças a Deus, sou uma pessoa muito amada por meus fãs que valorizam o meu trabalho e não há mais, diretamente a mim, ações declaradas de racismo. Nos anos 1970, ainda no início da carreira, eu que sou claustrofóbica, fui visitar um amigo que morava no andar alto de um prédio. Ao chegar ao edifício e ter minha entrada autorizada, o porteiro disse que eu só poderia subir pelo elevador de serviços. Comentei que estava visitando e entrei no elevador social. Após alguns andares, o porteiro travou o elevador, de propósito como uma punição e preconceito. São coisas que não se esquece.
Quando a senhora pensa em família, o que vem à mente? De que maneira se conecta com as lembranças que fizeram parte da sua infância, adolescência e hoje uma mulher independente, dona de si, que sabe o que quer e o que não quer? Como a sua família moldou a sua vida para ser quem é hoje?
Morei no “Asylo Espírita João Evangelista” dos seis aos 12 anos. Vivi num colégio interno, longe da minha família. Sou muito grata por tudo que vivi lá, mas, sim, me senti muito rejeitada. Não consegui entender porque fui para o colégio interno, enquanto meu irmão ficou com a vovó, em Campos. Isso para a cabeça de uma criança é meio louco, né? Cheguei a pensar que era filha adotiva. Mas o internato foi muito importante. Aprendi a bordar, a fazer tricô, crochê, a cozinhar e, sobretudo, a viver em comunidade. Éramos 60 meninas. Conviver é difícil. Aprendi a fazer isso em harmonia e, mais importante, a ser solidária, afinal, você não pode passar a vida inteira olhando apenas para o próprio umbigo. Era para eu ter ficado lá até os 16 anos, mas meus pais melhoraram de vida, saíram do Cantagalo para morar num apartamento no Leblon e me levaram com eles. Minha mãe tinha montado um ateliê de costura no apartamento, que à noite virava residência. Isso tudo me moldou para eu ser quem sou hoje. Quando penso em família, penso em amor, em fazer pelo outro, em simplicidade…
Zezé, a senhora é uma mulher que sempre trabalhou, se dedicou muito à arte, e a gente sabe a rotina intensa que é a vida de um artista, mas ainda assim decidiu ser mãe. Há alguns anos ainda não havia toda essa conscientização de que a obrigação de cuidar dos filhos fosse do casal. Como foi esse período para a senhora? Como foi dividir as dores e as delícias de criar os filhos?
Olha, eu nunca parei para pensar nisso porque eu tive muitos casamentos e eles quase sempre duravam cinco anos. Eu sempre fui meio que a responsável pela casa, pelas meninas, por quase tudo… Viaja muito, não parava e a vida foi passando e a gente se virava, no final dava tudo certo. Não foi fácil cuidar de três meninas adolescentes e um menino. Tinha momentos que era bem puxado, mas dei conta… Tem a parte boa também, o amor, o carinho, acompanhar o crescimento, isso é o que importa.
Eu gostaria que a senhora falasse um pouco sobre o Cidan (Centro de Informações do Artista Negro). Qual a importância deste projeto na sua vida? E qual a situação atual dele?
Foi em 1984, eu criei um banco de dados listando os artistas negros. Criei esse projeto com outras pessoas do movimento negro, o Centro de Informação e Documentação do Artista Negro (Cidan), para dizer quem somos, quantos somos e onde estamos. O banco tem mais de 500 atores negros. Já conseguimos, por exemplo, ter um curso de teatro nas comunidades carentes, patrocinado pela dona Ruth Cardoso [saudosa antropóloga e ex-primeira-dama do Brasil, 1930-2008], de quem me aproximei quando fui conselheira de Direitos Humanos, entre 1995 e 1998, durante o primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso [marido de Ruth]. Na época, uma amiga promoveu um curso de cabeleireira para comunidades carentes e fui madrinha da primeira turma. Percebi a transformação que iniciativas como essa geram no modo de vestir e de falar. Nós temos a autoestima no subsolo. Neste momento, nossa ideia é reativar o Cidan. Tinha revezamento na presidência. O primeiro foi Jaques Jacques D’Adesky, um dos fundadores, depois eu e depois o Antônio Pompêu [morto em 05 de janeiro de 2016]. Por todas essas questões, e, sobretudo, por causa do desemprego, ele teve que priorizar a sobrevivência dele e, como não conseguia trabalho, ele entrou em depressão e o Cidan ficou parado. Pompêu era muito fechado, ele não abria muito pra gente o que estava acontecendo, ele ficava muito constrangido porque as coisas não iam bem, e a gente tentava uma reunião, ele ficava protelando, protelando, porque ele queria resolver primeiro as questões do Cidan, as dívidas, enfim, os problemas de um modo geral, para depois marcar uma reunião e anunciar: tivemos esse problema mas está resolvido. Mas, infelizmente, não teve tempo para isso. Então, nossa página hoje está parada, mas tenho uma meta de em 2022 retornar. Tem que deixar passar este momento cruel e perverso que o país está atravessando para ver se consigo patrocínio para reativar o Cidan. Um dos problemas do Cidan é uma dívida que tem que ser resolvida para que a página volte.
Num post no Instagram a senhora faz um relato sobre vaidade, ditadura da aceitação, ficar velha, se gostar, se amar. Essa é uma maneira de mostrar às pessoas que a senhora é quem tem o desejo de ser, independentemente das cobranças alheias? Em algum momento da vida a senhora deixou de fazer alguma coisa em função do outro?
Todo mundo nessa vida já tentou ser alguém para agradar o outro ou então se deixou levar por algum padrão, mas também está muito ligado à maturidade da pessoa, entende? Depois que você passa dos 60 anos, tudo muda, sua cabeça muda muito, você cansa das coisas e sente preguiça. Preguiça de querer se moldar a algum padrão, por exemplo. Estou muito bem resolvida com quem sou, o que me tornei. Hoje me cuido muito sim, faço ginástica, faço dieta, não por um padrão, apenas por saúde.
Zezé, falando sobre sua carreira musical, quais são os lugares que a música te emociona, te leva? Claro que é diferente de atuar, mas o que a senhora sente quando canta e o que gostaria que as pessoas sentissem quando elas escutam sua música?
Se você me colocar contra a parede, acho que fico com a música. Isso porque empresto a atriz para a cantora. A música sempre fez parte da minha vida. A ideia de ser cantora veio do meu pai, com toda certeza. Ele trabalhava como motorista durante o dia, para ganhar dinheiro, mas era músico erudito. Também dava aulas de violão e tocava música popular na noite para sobreviver. Sou do tempo do rádio. Minha mãe e eu passávamos o dia inteiro costurando e ouvindo a programação. Quando meu pai chegava em casa, eu falava: “Olha que música linda que a Dalva de Oliveira gravou”, e cantava para ele. Um dia, quando eu tinha uns 16 anos, a Ellen de Lima gravou uma muito difícil. Assim que terminei de cantar, meu pai perguntou: “Quantas vezes você ouviu essa música?”. Ela tinha acabado de lançar o LP, tinha escutado umas três vezes. Então, ele disse: “Você aprendeu a melodia, decorou a letra, que é enorme, e não desafinou. Tem que ser cantora”. Era engraçado porque minha mãe torcia para que eu seguisse a profissão dela e, meu pai, a dele. Fiquei muito dividida, até porque ela era uma modista bem-sucedida e sempre me dizia que meu pai não tinha conseguido fazer carreira nem como músico erudito, nem como músico popular. Acho que misturar a atriz com a cantora dá certo, porque interpreto no palco, cada música cantada eu crio uma personagem, vou lá e me jogo.
Além do filme “Alemão 2”, que acabou de ser lançado, quais seus próximos projetos?
Nossa é tanta coisa! Agradeço a Deus todos os dias por estar com 77 anos e em plena atividade. Esse ano tenho sete filmes para rodar. Acabei de fazer uma série para a Globo, a segunda temporada de “Arcanjo Renegado”, e já vou começar a rodar outra, chama “Fim”, de autoria da Fernanda Torres, também para a Globo. Em seguida, vou ao Piauí gravar um filme sobre a vida da Esperança Garcia, uma mulher negra escravizada brasileira, considerada a primeira mulher advogada do Piauí. Pretendo gravar um novo disco esse ano, em julho tenho a terceira edição do Especial Mulher Negra, onde sou mentora, e também tenho shows confirmados no Rio, em São Paulo e em Salvador. Ufa!
entrevista: Ester Jacopetti