Desde a infância ela sempre sonhou em ser médica. Qualquer assunto que tivesse relação com saúde, lá estava ela, curiosa, sempre lendo ou pesquisando. A vida é feita de sonhos e vontades e foi durante uma sessão com o terapeuta que Ana Cláudia Michels decidiu correr atrás desse propósito que estava engavetado há anos, já que sua profissão como modelo começou ainda na juventude, aos 14 anos, e estava a todo vapor. Formada em Medicina pelo Centro Universitário São Camilo, Ana Claudia deixa a emoção falar por si, e não é para menos. Durante os anos de estudo, ela engravidou duas vezes, mas não desistiu, continuou seguindo seu caminho, determinada e cheia de vontade. O resultado dessa entrevista exclusiva à Revista Regional você confere a seguir.
REVISTA REGIONAL: Você começou a sua carreira profissional aos 14 anos como modelo, como foi que a sua história profissional aconteceu?
ANA CLÁUDIA MICHELS: Eu fiz um curso no shopping da minha cidade (Joinville, SC) que uma amiga me indicou e a princípio achei que fosse para manequim, na minha época tinha esse tipo de curso onde você aprendia a andar de salto alto, aprendia umas bobagens… (risos) Mas, na verdade, o professor estava super querendo ensinar a andar numa passarela, eu nem sabia que existia passarela. No final do curso teria uma formatura e um desfile numa cidade próxima e eles precisariam de duas meninas que andassem bem de salto, fui eu e mais uma colega. Foi lá que um olheiro (profissional de uma agência de modelos) me descobriu.
São inúmeras viagens, lugares maravilhosos, que você já visitou, mas as pessoas não têm ideia dos perrengues que uma modelo internacional passa. Você se lembra de algum momento, especialmente no início da carreira, que tenha vivenciado?
Hoje em dia mudou muito, mas na minha época nós começávamos muito jovens, com muito mais incertezas do que certezas e, logo no início, tínhamos que viajar para outros países, conhecer pessoas, éramos meio largadas, não havia um acompanhamento. As primeiras viagens eu fiz com a minha mãe, mas com 16 anos eu comecei a ir sozinha. Nós ficávamos um período de dois, três meses fora do Brasil em diferentes lugares e não tinha telefone, naquela época era muito caro, então falávamos uma vez por semana com os nossos pais e rapidinho. Era muito solitário. Mas também havia muita crítica, coisas que todo mundo já sabe, por conta da sua fisionomia, muito mais crítica do que elogio, são vários “nãos” para ter um pequeno “sim” em algum lugar. Quando você é muito jovem é muito sofrido, marcou todo mundo da minha época de modelo, mas me deixou forte também. Eu me sinto uma mulher muito mais forte, mas mesmo assim eu não gostaria que a minha filha passasse por isso, existem outras formas para ela ficar forte também.
Aliás, após alguns anos dedicados à carreira de modelo, você finalmente pode se dedicar à Medicina. Por que não foi possível estudar antes e quando realizou esse sonho como você se sentiu?
Olha, tirando o dia do nascimento dos meus filhos (Yolanda e Santiago), terminar o curso de Medicina foi, sem dúvida, um dos momentos mais especiais, foi a minha maior conquista de todas. Eu nunca vou esquecer, nunca! Eu só adiei esses anos todos porque eu estava totalmente envolvida com o trabalho de modelo, logo no início eu comecei a viajar, quando eu tinha 18 anos a minha carreira deslanchou, então era o tempo inteiro viajando. Eu vivia totalmente dentro desse mundo, era a minha vida, você praticamente não vê o tempo passar, mas os anos foram passando e, às vezes, as pessoas falavam “você não queria ser médica?”, porque eu comentava com os meus amigos, mas eu falava como se fosse uma coisa que já tivesse acabado, ficado para trás. E quando eu estava perto de completar 30 anos, estava na terapia e o meu terapeuta sabia que eu amava Medicina, mesmo não fazendo eu gostava muito, o que tinha de texto eu lia, tudo que era relacionado à saúde eu tinha muito interesse em saber, ele perguntou “por que você não se matricula num cursinho?”. Naquele momento, realmente parecia uma loucura, mas resolvi ver aquilo de uma forma divertida, eu falei “eu vou, o pior que pode acontecer é eu aprender muita coisa legal no cursinho, então eu vou um dia de cada vez e seja o que Deus quiser”. Eu amei voltar a estudar porque eu sempre gostei, depois de um ano e meio eu consegui entrar (na faculdade).
Na sua família tem alguém que é médico?
Na minha família tem mais duas médicas, mas que são mais jovens do que eu, são duas primas. Elas se formaram antes de mim, eu comecei muito mais tarde, mas elas sempre souberam que eu também queria ser médica.
Passada a pandemia você já sabe onde pretende fazer residência, aliás, gostaria de se especializar em que área?
Eu estava fazendo alguns plantões em postos de saúde e em medicina do trabalho só para manter o contato com paciente, mas eu queria neste ano realmente me preparar para a prova de residência porque é muito difícil conseguir uma residência legal, é muito concorrido. Eu estou com dois filhos em casa, então fica muito difícil e não sobra muito tempo para estudar. Eu quero fazer clínica médica, mas eu ainda não sei se faço outra coisa depois, é que várias outras especialidades têm a clínica médica como pré-requisito, então eu vou começar por este caminho. Eu gosto muito de clínica, gosto de consultório, de conversar com o paciente e tratar várias doenças ao mesmo tempo, estou estudando bastante, o melhor horário que eu consigo estudar é a partir das nove da noite, é o horário que as crianças já estão dormindo, mas antes da pandemia eles estavam na escola, eu conseguia estudar mais, mas agora estão subindo no lustre o dia inteiro… (risos). Eu gosto de estudar, então pra mim não é uma dificuldade.
Diante da pandemia, se fosse necessário ir para a linha de frente, você iria?
Eu toparia, mas sou recém-formada, se eu for até lá não quero só porque é um momento histórico, é lógico que me dá vontade, mas eu tenho que pensar em outras coisas antes, eu tenho que proteger os meus filhos, se eu acabo indo para o hospital eu trago essa carga infecciosa para casa, eu não sou mão de obra especializada, não me colocaria numa UTI, eu faria outra coisa. Então o que eu fiz: liguei para minha professora que foi uma das pessoas mais especiais, que tem uma equipe de clínica médica no hospital geral de Carapicuíba (Grande São Paulo) e falei para ela que se precisarem de ajuda eu vou. Eu me coloquei à disposição dela e dos “Médicos Sem Fronteiras” para que se eles realmente precisarem de profissionais, mesmo que não sejam qualificados, como eu, eu vou trabalhar, vou com gosto e a família inteira tem que se arriscar mesmo, mas só nesses casos, mas eu não vou trabalhar só por trabalhar, enquanto houver profissionais mais qualificados do que eu, vou continuar em casa.
As duas profissões têm seus níveis de dificuldades, mas se tiver que optar por uma delas, qual você escolheria?
Ah, mas eu já escolhi, eu continuo modelando, mas muito pouco. Desde que eu entrei no cursinho pré-vestibular nunca mais fiz trabalho fora do Brasil, eu realmente estou fazendo trabalhos específicos no qual eu sou chamada, quando me procuram na agência, eu não vou a casting para seleção nem nada porque eu já fiz essa escolha há muito tempo, mas eu acho uma delícia continuar trabalhando. Eu fico sempre muito honrada quando me chamam para fazer trabalhos como modelo, é gostoso quebrar um pouco a rotina da Medicina.
Voltando um pouco ao assunto do momento que é o novo coronavírus, você acredita que é possível aprender algo com tudo que está acontecendo com a humanidade?
Eu acredito que muita coisa irá mudar, não vamos ser como antes, mas espero que seja para melhor. Estamos todos vivendo um momento muito pesado, mesmo eu sendo uma pessoa cheia de privilégios, sei que tem pessoas que passam por esse momento de uma forma muito mais difícil do que eu. Mesmo assim acaba deixando a gente meio pra baixo, e com dificuldade de acreditar que a gente vai sair do outro lado e vai ficar tudo bem. Eu faço exercício todos os dias de acreditar que tudo tem um propósito e a humanidade vai sair melhor. Eu espero que isso aconteça.
Como você e sua família estão lidando com o isolamento neste momento porque são duas crianças pequenas e elas demandam certa atenção…
Eu tenho uma pessoa que trabalha comigo, enquanto eu estava fora, antes da pandemia, ela ficava em casa com as crianças, ela é da Paraíba e desde o início eu falei pra ela “Mirtis, você vai ter que decidir, ou é ficar aqui ou ir pra Paraíba, não dá pra ficar indo e voltando na sua casa aqui em São Paulo”, ela não tem família aqui. Então ela disse que preferia ficar comigo. Ela é muito apegada ao meu filho mais novo, ela está desde o início em casa e graças a ela estou conseguindo estudar um pouco, as crianças dão trabalho para 15 adultos, e ainda mais sem escola, elas ficam frustradas, mas a graças a Deus, a Mirtis e o meu marido (Augusto de Arruda Botelho) estão me ajudando, mas ele está super ocupado com esse programa novo na CNN que é todos os dias. Ele sempre foi bom de falar “imagina, uma hora por dia eu chego lá, estudo e resolvo”… Mas ele viu que o buraco é mais embaixo e a audiência é alta, então a partir das onze da manhã ele já está lendo os jornais e ficou pra mim e pra Mirtis cuidar das crianças e, à noite, quando eles dormem, eu estudo.
Você comentou sobre o Augusto, ele trabalha em um dos meios de comunicação mais atuantes no Brasil no momento. Como você enxerga o papel da mídia diante dessa situação? Você acha que a imprensa está cumprindo bem o seu papel?
A mídia é essencial e nós precisamos dela. Ela precisa ser livre, é a única forma de conseguirmos ter informações que possamos confiar, principalmente nos dias de hoje, com a quantidade de informações falsas divulgadas por aí, de várias formas, pelo celular, pelas redes sociais.
Eu vi que você gravou um vídeo recentemente falando sobre a disseminação do vírus e a importância do isolamento social e de nos protegermos, mas infelizmente quem deveria dar o exemplo não está dando, como é o caso do presidente Jair Bolsonaro. Como influenciadora, como você enxerga esse tipo de comportamento?
Eu acho muito triste, muito trágico porque é justamente agora que nós precisamos de um líder e estamos vivendo isso há muito tempo no país, essa divisão entre esquerda e direita, e vemos um presidente que não consegue conversar e articular com o próprio governo, então deixa todo mundo muito inseguro, eu acho. Eu vivo numa bolha em São Paulo de pessoas que têm um pouquinho de noção, de discernimento que é uma questão de saúde, então vamos escutar os profissionais de Saúde e o Ministério da Saúde, mas a gente sabe que o país é grande, é plural, eles não sabem quem seguir, cada um tem a sua cultura, e com certeza em alguns lugares eles preferem ouvir o presidente que é quem aparece mais também. É muito triste ver isso. É mais um obstáculo, grande inclusive.
Por ser da área da Saúde, como você acha possível um profissional suportar ver a quantidade de pessoas que estão morrendo? Como trabalhar o emocional?
Eu acho que é tudo novo, inclusive para o profissional da Saúde, não só pelas mortes porque infelizmente o profissional acaba se acostumando, mas nunca é “morreu e tudo bem”, é sempre uma questão, mas todos os dias a gente vê alguém morrendo, então nós estamos habituados a lidar com isso. O complicado é lidar com o número grande de mortes de uma doença que você não sabe exatamente o que ela faz, quem pode estar contaminado, quem está levando o vírus para casa, a insegurança que a pessoa vive não só dentro do hospital, mas quando ela sai de lá, quando ela pega o ônibus, quando ela vê as lojas fechadas, quando ela vê a família dela em casa preocupada, então essa tensão toda é muito pesada para o profissional da Saúde, muito mais do que as mortes em si porque a maioria está um pouco mais habituada a isso.
Você chegou a conhecer algum amigo ou colega de profissão que está na linha de frente e que foi infectado?
A minha prima e o noivo dela, eles não tiveram praticamente nenhum sintoma, o noivo ficou um dia um pouco mais cansado, mas não de respiração, ficou cansado mesmo, dormiu um dia inteiro e no dia seguinte já estava ótimo, a minha prima também, sorologia positiva e não estava com nenhum sintoma. Eu tenho vários colegas trabalhando, colegas da faculdade que ficaram doentes e em algum momento testaram, mas que não saíram até agora, ou deu negativo, mas não dá para acreditar nesse negativo, é muito difícil saber o que acontece. A maioria é assintomática, por isso seria tão bom se tivéssemos testes bons e confiáveis porque nós teríamos noção de quantas pessoas já pegaram e estão imunes, pelo menos provisoriamente.
Em meio ao isolamento, como você tem se comunicado com a sua família, pais, avós?
Eles estão em isolamento também, quando o Augusto começou na CNN a gente conversou aqui em casa que não daria mais para eu ir para lá depois disso, porque nós estamos sobre maior risco agora que ele sai todos os dias de casa. Eu fui com as crianças para Joinville e ficamos um tempo com os meus pais, voltamos para São Paulo e estamos direto aqui, porque agora não dá mais para ir, não sabemos se pegamos ou não, o meu marido tem contato com muitas pessoas todos os dias. Nós temos uma preocupação de contaminar outras pessoas, então todos ficam em casa.
Tem alguma coisa que você sente falta de fazer e que era parte de sua rotina antes da pandemia?
Eu sou uma pessoa muito caseira, eu adoro ficar em casa, eu sempre fui assim desde menina, mas as crianças estão sentindo muito, elas não ficam tranquilas dentro de casa, a de três anos a vida dela era a escola, então ela sente, ela quer sair, quer conversar com as pessoas, ela não se conforma. Não está tão tranquilo ficar em casa. Eu sinto falta dos meus amigos mesmo, de sair para jantar, poder conversar, abraçar, beijar, essa é a parte que eu mais sinto falta mesmo.
reportagem de Ester Jacopetti
fotos: Zee Nunes e Arquivo Pessoal