Imersa em sua personagem Lola, de “Éramos Seis”, a atriz entende a importância do comprometimento com a arte e faz nas telas uma pintura de uma mulher guerreira, que não desiste nunca
Gloria Pires ama o que faz. Não é à toa que ela investe toda a sua energia em seus personagens, aliás, só de carreira são 50 anos se dedicando de corpo e alma às muitas mulheres que já viveu na TV e no cinema. Para citar algumas: Marisa (Dancin’Days), Zuca (Cabocla), Ana Terra (O Tempo e o Vento), Rosália (Direito de Amar), Maria de Fátima (Vale Tudo), Ruth e Raquel (Mulheres de Areia), Julia Falcão (Belíssima), Nice (Anjo Mau), Rafaela Berdinazzi (O Rei do Gado), Maria Moura (Memorial de Maria Moura). E para comemorar essa data especial, a atriz analisa sua trajetória e a importância que seus trabalhos têm na dramaturgia. Imersa em sua personagem Lola, de “Éramos Seis”, a atriz entende a importância do comprometimento com a arte e faz nas telas uma pintura de uma mulher guerreira, que não desiste nunca. A seguir, você terá a oportunidade de desvendar alguns mistérios sobre o talento e a dedicação de Gloria, criando e inovando a linguagem da dramaturgia. A entrevista foi feita na coletiva de imprensa da novela das seis da TV Globo.
REVISTA REGIONAL: Falando em anos de carreira, como você se sente ao traçar esse ciclo na dramaturgia brasileira e hoje ser uma das atrizes mais importantes nesse cenário?
GLÓRIA PIRES: O sentimento é de ter chegado a um lugar que eu nunca pensei. Primeiro, porque não imaginava que estaria um dia completando 50 anos de carreira. Eu conheci pessoas, fiz amigos ao longo do percurso, tive a oportunidade e sorte na minha trajetória. Eu sempre fui chamada para trabalhos muito significativos, importantes. O balanço que eu faço é de felicidade. Eu adoro sair da zona de conforto e, aos 56 anos, poder fazer uma novela como “Éramos Seis”, que é algo que eu faço há mais de 50 anos, é maravilhoso, é um presente!
Uma de suas personagens mais emblemáticas, sem dúvida, foi Maria de Fátima (Vale Tudo, 1988). As pessoas tomaram gosto pelas vilãs, você ainda recebe o carinho do público?
Nossa, as pessoas amam a Maria de Fátima! Amam! Até pouco tempo estava rolando um vídeo, eu fiquei uns oito meses recebendo pelo celular, dos grupos, das pessoas, dos amigos que recebiam aquela famosa cena da novela (Vale Tudo) com o Vasconcelos (Sebastião) e a Regina (Duarte), eu falando sobre o nosso sistema, nossa cultura, do jeitinho, enfim, fiquei uns oito meses recebendo esse vídeo que é muito atual. Quando uma pessoa está tomada pela vingança achando que não está contra alguém, ela está contra ela mesma, porque são sentimentos muito nocivos, destrutivos, não dá. Eu não poderia viver sobre esse signo da perseguição, da vingança, eu não me conecto. Claro que todo mundo é humano, uma hora você pensa nas piores coisas, mas procuro não me conectar. Vivemos um momento onde recebemos muita influência negativa, tem horas que eu desligo o celular, não quero saber de mensagens e nem de redes sociais, para dar uma zerada, porque, do contrário, fica muito difícil terminar o dia.
Aos 56 anos, você continua sendo uma referência para as mulheres que buscam essa beleza, mas como é ser citada dessa forma?
Eu acho muito engraçado porque não é algo que eu pensaria, mas fico feliz e tenho consciência dessa responsabilidade, por isso, tomo muito cuidado com o que eu falo, das causas que eu defendo. Eu tenho um retorno muito bonito, e me sinto responsável por isso. Mas eu gostaria de ter uma fórmula para passar, mas é uma boa genética da minha mãe, essa é uma das grandes heranças que ela me deixou. Eu sempre me senti muito mais velha do que a minha idade, pode ser pelo fato de eu ter começado a trabalhar muito cedo, ter responsabilidade, a vida muda um pouco de figura, eu realmente não dou tanta importância ao aspecto juventude. A juventude está dentro de nós, na nossa cabeça, nas nossas práticas, na maneira que escolhemos viver. Mais uma vez, uma boa alimentação é a base de tudo. Eu busco ser feliz porque não tem sentido você viver escrava. “Ah, mas porque é atriz tem que ser perfeita, tem que ser boneca”. Eu não me encaixo nesse padrão! Na verdade, não existe um objetivo neste sentido porque a vida não tem bula, não tem receita, tudo vai
acontecendo, vamos sendo surpreendidos e precisamos desenvolver uma estratégia para lidar com os acontecimentos. O passar do tempo, para mim, nunca foi um problema, a não ser pela questão da falta de saúde, mobilidade e dependência, coisa que a gente associava às pessoas mais velhas, mas isso também está mudando. A minha mãe era uma mulher pouco vaidosa, acho que absorvi isso dela, eu não tenho uma expectativa enquanto atriz de ser uma mulher bela ou para sempre jovem, mas sempre me preocupei com a questão da saúde. O meu pai se preocupava com a alimentação, herdei dele também. Com a minha idade, comecei a adquirir certos cuidados porque é o que nos estrutura, a pele, o cabelo, a unha, claro que existem cremes maravilhosos que auxiliam, mas a base vem de dentro.
Mas a gente sabe que existe uma pressão, não só da mídia, de que as mulheres precisam estar lindas e maravilhosas…
Eu sendo uma artista, preciso me aceitar, é um fato na vida porque eu trabalho com isso, faço novelas e não tenho opção, mas acho importante quando um artista quer impactar positivamente quem o acompanha, é um presente.
Hoje com a falta de naturalidade, até mesmo os adolescentes querem atingir certos padrões de beleza…
Isso sempre existiu, mas sem dúvida essa superexposição, principalmente com a chegada das redes sociais, tem ficado cada vez mais exacerbada. Eu costumo dizer que na minha época de adolescente, não via minhas colegas maquiadas, hoje é quase impossível encontrar uma menina de 14 anos que não esteja maquiada. Eu comecei a usar a maquiagem como uma ferramenta de trabalho, mas hoje encaro com muita estranheza porque são meninas lindas, mas maquiadas, antecipando algo que poderia ser feito no futuro.
Nos dias de hoje muitas mulheres são arrimos de família e cuidam sozinhas de seus filhos, ou porque são viúvas, ou porque o pai não quis assumir…
Essa situação não é de agora, porque antigamente não sabíamos, mas hoje temos informação. “Éramos Seis” (novela da Globo) fala de como a vida era dura, de trabalho físico, mas toda essa tecnologia, esse conforto que existe
hoje que naquela época não existia, era muito difícil e complicado. A produção de arte dessa novela é maravilhosa, sempre que proponho algo, eles absorvem e colocam em cena. Outro dia eu estava carregando um caixote cheio de frutas e verduras… A vida era assim, dura, e continua sendo, apesar de estarmos em outra época. A Lola faz de tudo para resolver os problemas da família dela, mas a gente sabe que as mulheres dependiam dos maridos, porque foi só o que nós ouvimos, a grande diferença dessa novela é que ela enaltece o poder que toda mulher já tinha naturalmente, porque são as grandes mantenedoras dos lares e das famílias.
Mas as pessoas sabem que apesar de toda essa dedicação da sua personagem à família, o final dela é bastante trágico…
O livro “Éramos Seis” é bem mais duro do que tem sido em todas as versões produzidas na TV. Ninguém ousou fazer essa novela como está no livro, porque é de uma dureza e crueza que a gente termina realmente no chão. A ideia é ter esse pano de fundo, ter a Lola, essa família, essa história, mas trazer algo que inspire que leve as pessoas justamente a acreditarem em seus sonhos, nos seus propósitos, se dedicarem a realizar o que elas desejam, mas sabemos que a Lola, o que ela mais faz é chorar. Eu já chorei, mas não pela cena, mas por todo o ambiente, toda atmosfera, a dureza, porque se aproximar desse momento dos anos 1920, estar perto de como era a realidade dessas pessoas, era uma vida muito dura e, ainda assim, elas tinham muita alegria e esperança, essa é a pegada da novela.
Você comentou em outras entrevistas que chegou a acessar uma memória afetiva em relação a sua família, porque a sua mãe também era costureira, assim como a sua personagem, foi muito emocionante?
Demais! A minha mãe adorava costurar pra gente, eu estava sempre acompanhando o processo quando ela cortava os moldes, quando ia comprar os tecidos, eu ajudava a escolher, dava palpites, e agora a Lola tem isso realmente como um ganha-pão, como uma maneira de ser uma renda para a família. Eu aprendi a fazer tricô, se tornou um vício, mas não sobra tempo. Eu aprendi a costurar na máquina com a minha mãe, a que usamos na novela é diferente, essa é de pedal, mas também aprendi, isso é maravilhoso na função
de ser ator, porque nós temos acesso a tantas coisas, aprendemos muito. Quando eu fiz “O Tempo e o Vento” (1985) aprendi a fiar, é dificílimo, mas aprendi, é a mesma história do pedal da máquina. Essa é uma homenagem a minha mãe e a minha avó Deolinda, que está aqui comigo, através dessa pulseira que era dela. Ela era mãe do meu pai, mas ela e a minha mãe se davam muito bem, eram muito amigas, então, essa sororidade elas já tinham, elas se ajudavam. A minha mãe costurava por gosto, adorava fazer roupas criativas, os meus pais eram bem engraçados, muito criativos, queriam coisas diferentes. Cada vez que eu leio uma cena, algo me remete ao passado, a minha mãe, ou a minha avó. A cidade cenográfica para mim é quase um passeio com o meu pai…
“Éramos Seis” é uma história que fala sobre sonhos, família, união, mesmo tendo sido contada há muitos anos. Qual a importância de se recontar nos dias de hoje?
A arte e a cultura em geral tem a capacidade de fazer a gente pensar, primeiro de nos instruir a aprender com outros hábitos e épocas, revendo uma criação, mas reconhecendo essa história e também se emocionando. A novela tem muito esse olho no olho, de estar próximo.
Você e o Orlando tem quatro filhos, mas a Cleo e a Antonia moram fora. Não são mais seis…
Sempre seremos (risos), quando o Bento nasceu, a Cleo já não morava conosco, eles têm 22 anos de diferença. A Cleo é do dia 02 de outubro e o Bento dia 04. Nunca fomos seis na mesma casa o tempo todo, mas é claro que tem as férias, festas de final de ano, seremos sempre seis, não éramos, somos, mas eu sempre dei força para que eles buscassem realizar os seus desejos.
Além da novela você também está produzindo seu primeiro longa, um filme chamado “A Suspeita”, que deve estrear este ano. O que você pode contar dessa experiência?
Foi um trabalho muito intenso, nós tivemos dois meses pra fazer esse filme, ensaiamos em um mês e rodamos em outro. Foi totalmente apaixonante! É um
drama policial, a minha personagem é uma comissária que está prestes a se aposentar, ela já sabe que tem Alzheimer, e está se preparando para sair de campo, mas nesse momento está num caso que ela investiga e acontece uma reviravolta. Para construí-la, tivemos uma consultoria muito importante, tanto no texto, quanto na parte de logística em relação às possibilidades de irmos até as delegacias, conversar com inspetores e investigadores, pessoas que foram incríveis, totalmente abertas que falaram inclusive sobre questões pessoais, porque o enfoque é essa mulher nesse cargo importante na polícia civil, com todo conhecimento e potencial. Era importante entender a hora que o policial vai para a casa, e tem que lidar com seus problemas pessoais. Eu já queria produzir há muito tempo, mas não tinha oportunidade porque estava sempre envolvida em algum projeto. Claro que dá dor de cabeça, com certeza, mas também tem muito mais a sua marca, que era esse viés que eu estava interessada, para mexer no conteúdo, na história, no roteiro, na escolha dos profissionais que estariam no filme, toda essa estrutura.
Você acredita que estar por trás das câmeras também te ajuda a entender todo esse processo de produção?
Eu nunca tinha trabalhado nesse lugar, mas por estar há tantos anos no cinema e na televisão, sempre fui curiosa, eu já tinha ideia sim do trabalhão que era colocar um filme na tela, mas vale muito a pena. Eu fiquei muito feliz com o resultado! E pelo fato de ter mais mulheres nesse lugar de diretoras, produtoras, mas também nas histórias como protagonistas, porque é dificílimo, é um hábito ter o homem contando uma história, foi um desafio nesse roteiro, embora a história fosse essa durante o processo com o Pedro (Peregrino, diretor), que também foi um parceiro maravilhoso e tivemos uma sintonia rara de acontecer, e buscamos durante todo o processo esse ponto de vista dessa mulher.
Com o ano começando, o que você mais deseja?
Eu desejo um ano de realizações, um ano que a gente consiga fazer mais do que o que ficou para trás, mas principalmente com mais amor, mais tolerância e paz.
Foto: Raquel Cunha/TV Globo