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Os 90 anos de Fernanda

: Fernanda, aos 90 anos, está em grande estilo no filme “A Vida Invisível”, pré-indicado ao Oscar

Fernanda Montenegro comemora seus 90 anos em grande estilo. Ela está no aclamado filme “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, em cartaz nos grandes cinemas do país, principalmente nas capitais. Há anos o Brasil não ficava tão perto de um Oscar de melhor filme internacional. A última vez foi justamente com outro filme de Fernanda, “Central do Brasil”, em que também concorreu ao inédito Oscar de melhor atriz. “A Vida Invisível”, do cineasta cearense Karim Aïnouz foi escolhido para representar o país na premiação após sair vencedor de “Um Certo Olhar”, a mostra paralela mais importante do Festival de Cannes, na França, e já apareceu em lista da revista The Hollywood Reporter, uma das mais respeitadas do meio cinematográfico, como um dos prováveis cinco indicados que serão revelados pela Academia de Hollywood no início de janeiro. O filme trata do desencontro de duas irmãs, Eurídice e Guida. Carol Duarte (na juventude) e Fernanda Montenegro (no tempo atual) dividem o papel da talentosa e reprimida Eurídice Gusmão; já Julia Stockler vive a rebelde Guida. Na entrevista abaixo, Fernanda Montenegro, aos 90 anos, fala de sua atuação no longa-metragem e também de sua trajetória em mais de cinco décadas de profissão. A Revista Regional esteve na coletiva e traz os principais trechos dessa conversa.

REVISTA REGIONAL: São muitos anos de carreira e inúmeros trabalhos que escreveram sua história na dramaturgia brasileira, mas quais personagens te representa?

FERNANDA MONTENEGRO: Eu já fiz inúmeros personagens, mas a condição da mulher é sempre crítica, ainda é sob um comando e, mesmo quando não é, existe uma luta pelo comando. Há um grande fenômeno de crise na dramaturgia brasileira, que são as mulheres, mas os homens, coitados, também estão assustados porque o macho é necessário, mas o machão é um horror, é um monstro. Eu, como mulher, juro para você, o macho é essencial assim como a fêmea. Quem quiser ir do macho a fêmea, que faça a sua vida, compreende? Porque passará também por experiências existenciais inarredáveis, mas os personagens que eu tenho feito são sempre em busca de uma saída para suas vidas. Eu tive papéis ótimos sobre mulheres, ora menores, ora maiores, mas sempre numa crise do ponto de vista da dramaturgia, que é fundamental para existirmos, seja no cinema ou na televisão e até mesmo na vida.

“A Vida Invisível” é um filme que tem que recebido bons elogios das críticas. Como é para a senhora ter participado deste projeto?

O que eu acho muito especial neste filme é que ele não tem a didática do sentimento, não há uma retórica. O filme tem uma intensidade e interação de tal ordem do elenco e também do roteiro. Não é um discurso que se deve fazer diferente na vida, não. Eu fui buscar na personagem da Eurides (Gusmão) como ela levava o seu lugar no mundo, a não realização artística. Eu costurei esse olhar e essa personagem aos 90 anos. Estou falando do caráter mais íntimo porque o filme é interino, vaginal e não é fácil de se ver muito no cinema brasileiro, é mais premente, partimos para uma posição muito mais demonstrativa porque a nossa situação é sempre desesperadora.

Como foi trabalhar aos 90 anos ao lado do diretor Karim Aïnouz? Como você descreve essa experiência?

Um detalhe interessante sobre o diretor é que ele chega e pede que a cena seja assim, você faz a cena e quando ele volta, pede tudo diferente do que você havia feito, eu não sei se esse é o método dele, mas nesse filme foi assim, você faz tudo diferente, se antes estava no chão, agora você vai estar na cama, se antes você gritava, agora vai ficar calma, se antes era pauleira, agora não é mais… Não é para apurar aquilo que talvez se tenha encontrado de definitivo, não tem definitivo, sempre estávamos em estado de parto, “agora vai nascer”, isso dá um frescor de não buscar algo que deva vir de volta, às vezes a gente tem a felicidade de pegar aquele momento específico, ou perder também, está sacramentado para o melhor ou para o pior. É uma aventura muito alimentadora, cinema é uma viagem, talvez maior que interplanetária, porque ali é uma existência, às vezes tiram algo que você fez e você acha ótimo, mas não era tão bom assim, ou às vezes você não precisa ir porque daqui a pouco a história se explica.

O filme tem muitas cenas interessantes, inclusive algumas muito pesadas, que de alguma forma sobrecarrega o ator. Durante a sua vida na dramaturgia, como é lidar com esses sentimentos dos personagens de forma geral?

São cenas muito difíceis para quem não tem vocação, para quem não é da nossa área, essa dita profissão é para professar mesmo, não somos nós ali, são os personagens, esse é o grande mistério da nossa vida, dos artistas, dos atores e atrizes, eles podem até se envolver conosco, mas no nosso intrínseco é difícil de entender. Uma coisa é uma cena pornográfica em que os dois profissionais fazem sexo em função de vender essa cena, mas quando se trata de uma interpretação de um personagem, não são eles, e temos que dar credibilidade porque aquela doença, aquele terror, não somos nós. Esse é o nosso mistério. Eu acho que a gente sobrevive durante milênios por causa disso, somos inexplicáveis e não somos prioritários, mas somos inexplicáveis. Nós carregamos conosco o mistério da existência. No filme, por exemplo, é uma brutalidade impensável no distrato social e a mulher aguenta o tormento. O machão tem seu instrumento de prazer e na loucura de chegar ao orgasmo, ele faz o que a mãe dele jamais poderia imaginar que aquele monstro seria capaz. É uma área misteriosa da nossa vida, e nem a gente consegue explicar, estamos há um bom tempo falando sobre isso, não sabemos onde chegamos e de uma maneira mística, sei lá, nos envolvemos impensavelmente. Depois que saímos do set temos que ser um ser humano comum, e às vezes não somos.

Apesar de você ser uma inspiração na classe artística quem te inspira?

Estar viva me inspira! Na minha idade é saber ter uma cognação psíquica, algum fôlego físico, porque ainda me convidam para fazer filmes: ‘eu existo meu Deus!’ Metade da minha vida foi resolvida porque eu vim para uma vocação e no inimaginável, realizei essa viagem. Agora, na outra viagem a gente tem que lutar por ela, mas quando se tem uma vocação, um chamado, que também não se põe e não se sabe onde fica, é fazer algum tipo de trabalho ou de ofício, vamos chamar de doença para entendermos um pouco melhor, você sofre com prazer numa voltagem que ninguém segura, nem um sistema que está

contra nós. Essas frentes de filmes que nós temos no Brasil neste momento, entre os quais o nosso também está, você imagina que nessas circunstâncias, sem verba suficiente, temos uma filmografia de primeira, por força da vocação e ninguém vai nos calar porque é vital. Estou viva! Estou no filme.

Quando você era mais jovem, gostava de ler os folhetins com a sua família? Ou histórias épicas que faziam sucesso?

Quando eu era criança no subúrbio do Rio de Janeiro, passavam os vendedores de folhetins. Toda a minha família morava junto, e a minha mãe queria que as minhas tias analfabetas e primas vissem o folhetim, eram toneladas de capítulos dentro de malas porque não se jogava fora, até hoje eu não sei porquê. Ela esperava os folhetins, era um absurdo, árabes, príncipes salvando condessas, holandesas, elas se alimentavam semanalmente disso, eu achava um sentimento muito bonito, porque não é descontrolado, é humanizado naquilo que tem de mais possível de suportar a dor. Não podemos ter preconceito. Por que não ir do folhetim ao épico e do épico ao folhetim? O que é a literatura do século 19? As histórias? Não, os escritores, porque eles dão a dimensão das histórias absolutamente folhetinescas, inclusive a maioria escrevia folhetins nos jornais, eram histórias a serem lidas em capítulos, Dostoiévski, “O Vermelho Negro”, eu acho que há um mal estar na palavra folhetim. É tão difícil fazer um folhetim como é difícil fazer um épico, há um trabalho obstinado em cima do andamento da história. O nosso filme é maravilhoso, porque é folhetim feito por um artista absoluto que é o Karim (diretor), que toma uma dimensão humana, então, por que ele teria que ser épico? No folhetim, algumas cenas têm uma dimensão trágica, se fosse no épico, já estava tudo resolvido.

No filme, Eurides Gusmão é uma mulher sofrida que abre mão do sonho de se tornar uma grande pianista. No seu caso, o que te livrou de ser essa mulher na vida real?

A vocação! A grande tragédia da personagem é que ela se crucificou, se suicidou diante do processo da vida. A vocação dela não foi tão absoluta a ponto de passar por cima, porque não tem como segurar uma real vocação. Eu penso que há um ponto de tragédia na personagem, que não teve aquela vocação e talvez a irmã tenha tido, mas não na arte, mas de si mesma em busca da liberdade. O que é a vocação se não a busca da liberdade? Do seu existir? Seja contra quem for, é assim que a gente sobrevive na arte, basta a ideia de que não somos prioritários, não somos. Mas somos imortais dentro dessa vida pelo qual agradecemos há séculos e séculos, ainda mais nós mulheres que viemos para o campo de trabalho muito tarde, na antiguidade não existíamos, não sei como se resolviam, mas a partir da hora em que permitiram que subíssemos num palco, vença quem é o melhor, seja homem, seja mulher.

Como é ter participado de um filme que fala sobre o empoderamento feminino na década de 1950, e hoje, em pleno 2019, você ainda é alvo de críticas, vítima do machismo?

Eu não posso falar com conhecimento porque não sou eu, essa pessoa viu alguém que não sou eu, não sei se estou respondendo a sua pergunta, como não sou eu, tinha que procurar quem é essa pessoa… Estou sendo sincera ao te responder, não estou fazendo uma

brincadeira ou piada, não. Esse é um problema dessa pessoa, ela precisa de um tratamento, um psicanalista, é isso, mas já passou, se vier mais também, não sou eu, é um problema que esse ser humano precisa resolver com ele, um tratamento como eu falei que o conduza para uma realidade de vida.

entrevista e texto: Ester Jacopetti

foto: Paulo Belote

 

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