Mestre em Filosofia da Educação fala com exclusividade à Revista Regional: “A palavra humanização tem sido usada na educação com muita frequência, como um conceito de fazer com que o processo educacional seja mais leve, acolhedor, carregado de dispositivo que nós caracterizamos como humanos”
Com um extenso e admirável currículo, o mestre e doutor César Nunes é titular da Faculdade de Educação da Unicamp, na área de Filosofia da Educação e defende, junto com Miguel Arroyo, Celso Vasconcellos e Rubem Alves, a pedagogia da humanização e o conceito de que escola é para acolher. O professor César recebeu a Revista Regional no prédio Paulo Freire, na Faculdade de Educação da Unicamp, em Campinas, e contou um pouco do processo histórico educacional do Brasil e de como a conjuntura política impactou diretamente o desenvolvimento da educação, transformando a escola autoritária e conservadora.
REVISTA REGIONAL: Qual o conceito de humanização?
CÉSAR NUNES: A palavra humanização tem sido usada na educação com muita frequência, como um conceito de fazer com que o processo educacional seja mais leve, acolhedor, carregado de dispositivo que nós caracterizamos como humanos. A ideia de fazer a criança ser sujeito da própria aprendizagem, de ter paciência, de levar em conta o protagonismo socioemocional. De tratá-la com carinho, disposição, estimulando sua curiosidade. Orientando seus atuais erros de forma acolhedora e representativa e menos repressora. Humanização é tratar o ser humano com toda a grandeza e plenitude da dignidade do indivíduo. Humanizar as relações nada mais é do que considerar a dignidade humana de cada criança, como primeira causa.
Durante muitos anos o conceito de educação foi baseado em formar profissionais conceituados e de sucesso. Atualmente atuar nas competências socioemocionais dos indivíduos é tão importante quanto focar apenas na garantia do sucesso profissional. Qual o papel da escola hoje?
As escolas são representações da sociedade. Ela reflete o que a sociedade pensa, de maneira mais ou menos densa e integrada. Não há mudança na escola se não houver na sociedade e vice-versa, porque são duas instituições integradas organicamente. A sociedade brasileira é historicamente marcada por procedimentos políticos e econômicos muito rígidos. Tivemos 300 anos de colonização portuguesa, onde a metrópole nos via como uma colônia de exploração. Esta força do estado, quase que absolutista, criou uma força política muito autoritária de uma maneira que parece que tudo tem que ser de cima para baixo, muito hierarquizado e controlado. Quando tivemos a nossa independência, em 1822, continuamos como um império. A estrutura de poder no Brasil sempre foi a mais conservadora e a mais autoritária de todas as outras das Américas, fazendo com que a realeza seja a base do poder político entre nós. Isso fortaleceu uma estrutura autoritária e conservadora, não nos deixando viver uma experiência democrática como viveu a Inglaterra e a França, países berços do capitalismo. Por outro lado,
nossa economia também é predatória. De latifúndio, destrói a terra, faz pasto, se planta café e depois cana. Mão de obra quase que escrava, visando sempre o mercado externo e o lucro. Quero chegar ao seguinte ponto: a economia e a política constituíram um perfil autoritário e exploratório, que foi refletido na escola, nunca pensada para todos. Durante quase 300 anos, a escola que os jesuítas fizeram era para a elite e a catequese para o povo. Em 1822, a escola no império brasileiro era para elite no Colégio D. Pedro, no Rio de Janeiro. A escola republicana de 1889 tinha Benjamin Constant como grande ideólogo da República. Um general que usou uma frase de Auguste Comte: “o amor como princípio, a ordem como meio e o progresso como o fim”. Aqui no Brasil tiraram o amor e restou apenas Ordem e Progresso, que é, outra vez, uma disposição autoritária de manutenção do status quo. Temos matrizes políticas e econômicas que derivam matrizes culturais e escolares, autoritárias, hierarquizadas e elitizadas. De 1930 para cá, tivemos a industrialização brasileira. Somos uma economia rica para uma sociedade pobre. Temos um dos maiores índices de desigualdade social e enquanto isso prevalecer, teremos violência nas ruas, casas e trânsito. Foi em cima dessas matrizes econômicas que a escola de Getúlio Vargas foi baseada – foi neste governo que se criou o Ministério da Educação e teve como ministro Francisco Campos, que afirmava que a escola precisava ser como uma pirâmide, com uma base no chão de porta abertas para que todos entrem, mas seja tão rígida que só os mais aptos cheguem ao topo. O Brasil criou uma escola meritocrática, que quer o primeiro, segundo e terceiro lugar e não tem nenhum sentimento de mandar 30 para casa, de reprovar mais da metade. A ideia é sempre de escada e não de circularidade. O dia em que uma criança não for aprovada na escola, a sociedade inteira é reprovada, porque todo mundo tem que se humanizar. Se educar é humanizar. A escola de Getúlio vai até 1970, totalmente darwinista social e autoritária. Em 1971, a ditadura militar faz uma escola com primeiro e segundo grau – oito e três anos, respectivamente – e a faculdade apenas para as classes médias altas. Pela Lei 5692, a ditadura militar tirou o currículo da escola e acabou com aulas de latim, francês, literatura, entre outras disciplinas. A classe média sai da escola pública e entra na particular para passar no vestibular. A ditadura militar construiu duas escolas: a pública assistencialista e social e a particular meritocrática e vestibulóide. E sair desta escola o Brasil está tentando até agora.
E agora, o atual governo acaba de apresentar o Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (Pecim), que cria as escolas cívico-militares – que são instituições não militarizadas, inspiradas no modelo das escolas militares e com a participação de oficiais da reserva como tutores. Essa nova proposta educacional é totalmente contrária ao Plano Nacional de Educação e às novas diretrizes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – que aposta em uma escola mais contemporânea e humana. Qual é o reflexo direto no ensino nacional?
Em 1988, o educador Moacir Gadotti fez um discurso que dizia que “a educação brasileira é um pacto de mediocridade, onde o professor finge que ensina, o aluno finge que aprende, o estado finge que paga e a sociedade finge que tem escola”. Quem destruiu a escola brasileira e tirou dela a qualidade de autoridade que ela tinha foi a reforma militar de 1971 e não o Paulo Freire. Quem fez a reforma trágica da educação brasileira foi a Lei 5692. Depois de 1988 tivemos dois caminhos: a do governo do sociólogo e professor Fernando Henrique Cardoso que fez a reforma de 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases, que até hoje vigorosa. Na época, o Ministro da Educação era o Paulo Renato Souza (atual reitor da Unicamp), um economista, que achava que a educação brasileira tinha que se igualar à educação do primeiro mundo, com medidas avançadas. Ele tinha uma visão um pouco neoliberal, então se exemplou nas reformas educacionais espanholas e teve a ideia das competências e habilidades. Mesmo tendo a iniciativa, a reforma do governo FHC ainda ficou muito avaliativista. Já com os governos do
Lula (Luiz Inácio Lula da Silva) e da Dilma (Rousseff), tivemos um segundo caminho: as ideias do direito de estar na escola e do direito de aprender na escola. Com Fernando Haddad como Ministro da Educação abrem-se espaços para os movimentos sociais, temos nove anos de educação fundamental e não mais oito, ampliamos a escolaridade que antes era de sete a 17 anos para quatro a 17 anos, com uma emenda na Constituição. Hoje, se uma criança dentro desta faixa etária estiver fora da escola está contra a lei. Temos uma série de medidas feita por um governo democrático, na direção de fazer o direito de estar na escola. O FHC já tinha falado de competências socioemocionais, que volta em destaque no governo Dilma, junto com reparação, política de cotas, proteção à mulher, direto à liberdade do nome social, direito à igualdade de gênero. Essas duas propostas avançaram até certo ponto, mas também estacionaram. O Brasil teve um período, que nem as competências e habilidades tinham hegemonia, nem o direito à educação e estar na escola. No governo da Dilma isso chegou, por meio do Plano Nacional de Educação (PNE), Lei 13005/2014 – que demorou quatro anos para ser aprovado – do tanto que era contraditória. Após o impeachment, o (Michel) Temer assume e se cessam as duas ideologias: a das competências e habilidades e do direito de estar na escola. A BNCC tem três versões, duas feitas no governo Dilma e a terceira no governo Temer, que cessa toda a parte do direito de estar na escola, congela os recursos por 20 anos, volta-se a falar de competências essenciais, travando a educação.
O senhor está afirmando que a conjuntura política influenciou a educação brasileira?
Sim. A conjuntura política travou a conjuntura educacional. A BNCC tem três versões, sendo que a educação infantil é de uma versão do direito de estar na escola e o ensino fundamental de competências e habilidades, de avaliação e preparar as pessoas para o mercado de trabalho, que é uma visão mais conservadora. Nossa BNCC é mutilada, e abrange apenas a educação infantil e o ensino fundamental, afinal o ensino médio ficou de fora na Reforma da Educação do governo Temer. Foi um desastre as intervenções do Estado de 2016 a 2018. Há poucos dias, o governo atual fez a Política Nacional de Alfabetização (PNA), que determina a alfabetização das crianças para o primeiro ano do ensino fundamental. O ideal era fazer uma junção das propostas educacionais do FHC e dos governos do PT. Com a eleição do (Jair) Bolsonaro – e até agora os dois ministros que se apresentaram – voltamos à escola da ditadura militar. Escola não anda para trás, não tem que ter organização militar, que é um tipo próprio de quartel. A criança não precisa da disciplina militar, ela precisa de uma disciplina ética, amorosa, estética, de dentro para fora e com autoridade afetiva. As escolas militares supõem à criminalização das crianças pobres e são inseridas em bairros mais carentes. Não tem escola militar para classe média, média alta, que têm os mesmos problemas de disciplina que a sociedade brasileira. A ideia de escola militar é um atraso, é um anacronismo que o Brasil já teve e voltou atrás. É uma tentativa para uma sociedade conservadora, que não tem uma visão científica de educação e de escola, como uma medida paliativa e repressiva. Escola não pode ser quartel. Escola tem que ser um lugar de convivência, respeito e dignidade entre professores, gestores, alunos e família, a partir do convencimento e não da hierarquia, do controle e da obediência, que no sentido atual não é uma virtude democrática, afinal vem de cima para baixo. A melhor virtude hoje é o respeito, que vem de dentro. Toda pessoa que mostrar respeito às crianças será escutada e atendida. Temos 48 milhões de crianças na educação básica brasileira. O maior programa de inclusão do mundo é a escola pública. A escola brasileira funciona corretamente, mas é muito pobre – 37% não tem estrutura material e a base salarial de um professor é de R$ 2.048. Diariamente são 3 milhões de professores que
mantêm o ambiente escolar. O Brasil ainda não explodiu porque a escola brasileira, longe do que dizem as más línguas, é boa e acolhedora.
Essa desmotivação dos professores muitas vezes impacta os alunos, que automaticamente reflete no profissional de amanhã. Podemos dizer que é um dos grandes desafios de uma escola mais humana? Quais são os principais desafios para a formação de um adulto mais humanizado?
Os fatores são todos articulados. Tínhamos a possibilidade de juntar duas propostas educacionais progressistas, de dois governos diferentes e o que está sendo feito? Voltando à escola de 1971 com práticas militares, uma escola que brigamos 30 anos para sair dela. Demos dois passos para trás. Infelizmente, a educação é a primeira a ser atacada quando os conservadores tomam o poder. Se o Brasil não fizer uma reforma, estancar a bobagem que foi feita e retomar o caminho de uma política pública em educação progressista e dialógica, nós vamos cada vez mais ficar atrás de países que têm uma economia muito menor do que a nossa. Sempre reforço nas minhas palestras que tirar 25 milhões da miséria material é muito bonito, mas sem tirar da miséria cultural e escolar não adianta nada. Ele come, mas volta a perder a comida. Ele volta a perder. Ele mesmo vota nas pessoas que o trucidam. Sem uma reforma educacional e cultural, o Brasil vai fazer programas de assistência social, mas na primeira crise sem discernimento, dará passos para trás. Precisamos tirar as pessoas da miséria cultural educacional escolar e isso é projeto de 30, 40 ou mais anos. A Inglaterra levou 80 anos para erradicar o analfabetismo, a França 100 anos e o Brasil não consegue fazer desde 1822. Temos uma escola extremamente pobre sendo que ela precisa ser qualificada. O professor tem uma luta eterna por reivindicação salarial. É importante lembrar que o nosso piso salarial é uma conquista de 2008 e até então o Brasil não tinha um mínimo para professores, fazendo com que os municípios pagassem menos de um salário mínimo para nós, se quisessem. Para que a gente consiga ver uma escola melhor, precisamos primeiramente superar as contradições do atual modelo de gestão. Precisamos avançar na educação e o primeiro passo pode ser cumprir o PNE, que tem vigência por dez anos e vai até 2024. Ele é mais do que o período do atual governo e está na prateleira da história, ninguém vê. Temos que avançar na BNCC, que apesar de ser contraditória, tem competências socioemocionais e referências para o protagonismo do professor, e está muito mais avançada do que tudo que o Brasil tinha na ditadura militar. Não basta apenas motivar o professor. De nada vai adiantar ele chegar para trabalhar se sentindo o melhor do mundo e poderoso, se não há estrutura, se a escola estiver quebrada e sem condições físicas e humanas. Quem está desmotivado hoje não é só professor e sim toda a sociedade brasileira. Existe sim um grau de amargura maior no professor devido ao discurso recente, que os culpou por todo o fracasso da sociedade e da escola. Não tenho dúvidas de que a única forma de o Brasil sair da miséria cultural é por meio da educação. Estamos em 2019, o penúltimo ano da segunda década do terceiro milênio. Não foi uma década perdida na educação. Houve muito debate PNE, diretrizes curriculares, piso nacional. Estamos em uma fase que está travada, mas precisamos encontrar um meio histórico democrático de retomar a caminhada. O próximo governante que tivermos tem que superar o retorno da educação militar e retomar as competências socioemocionais e o direito à educação. Depois disso, talvez mais uns dez ou 20 anos, andando para frente, nós consigamos produzir socialmente uma criança esclarecida, amorosa, preparada para o mercado de trabalho como consequência de ter cultura e vocabulário. Só a escola vai nos tirar da miséria.
As escolas no Brasil são diversas e múltiplas, com várias propostas pedagógicas, principalmente na faixa da primeira infância e educação infantil e estão cada vez mais preocupadas em passar uma educação mais humanizada às crianças, com a metodologia do brincar e acolhimento. Acontece que quando as crianças finalizam esta fase e vão para o ensino fundamental tudo muda e volta em cena o modelo conservador de escola, com foco no passar no vestibular. Como garantir uma transição da escola do brincar humanizado para a escola mais tradicional?
Não há no Brasil uma rede única. Hoje existem 350 mil escolas de educação básica no Brasil, das quais 10% apenas são particulares. Na particular existe desde rede religiosa que começa no ensino infantil e vai até o ensino médio, rede alternativa como a Waldorf e escolas que aprenderam em cima da lei de novas diretrizes humanizadas. A educação infantil é direito da criança de 2008 para cá, mas de cada quatro crianças de zero a três anos, uma está na escola e o restante não. A ideia de humanizar a educação infantil é recente. Sou professor em uma universidade em que o futuro pedagogo estuda por quatro anos em período integral. Na Unicamp, ele aprende a contar história, técnica circense, história indígena e tantos outros conceitos e métodos não conservadores. A formação dos professores é um componente desafiador. Não posso concordar que a escola brasileira não está preparada para um conceito mais humanizado. Hoje, ela está abalada por uma conjuntura política. Sou hoje um representante da pedagogia da humanização junto com Miguel Arroyo, Celso Vasconcellos, Rubem Alves, que falam que a escola tem que acolher. A escola acolhedora. A sociologia nos ajuda a dizer que a causa de maior sucesso das crianças na escola, na Europa, é a escolaridade dos pais e aqui no Brasil é o ambiente de acolhimento da escola.
A criança tem que gostar da escola para ter sucesso no aprendizado?
Criança que é acolhida na escola é criança que gosta da escola. Ela não liga para o prédio, estrutura, mas o que ela gosta é das relações humanas: a professora que chama pelo nome, o porteiro que pergunta se o time dela ganhou. A escola tem que ter um choque de humanização e na escola brasileira isto tem que acontecer por meio da formação dos professores. Os outros elementos vão ser alterados pelas políticas públicas, mas o que faz alguém cuidar da criança é o processo informativo humanizador. Quando a criança estiver em uma escola com um gestor humanizado, esclarecido e professores motivados, fará diferença na vida dela. Temos que perder aquele pensamento que escola tem que preparar para o vestibular. Escola prepara para a autoestima, para o trava-língua, para conceituação, para gostar dos outros, para a massinha, para pedir desculpas. Depois que ela brincar com a palavra, vai brincar com os conceitos, e depois disso, se ainda existir vestibular, vai passar em todos, porque passou em outros anteriores: autoestima, humanização e acolhimento. Temos que desacreditar das escolas conservadoras. O momento agora é o protagonismo da criança. Está no Plano Nacional, está na BNCC: aprender a ser, a conviver, a fazer os pilares da educação. O processo de transformação da escola por dentro é o de formação do professor, que está parado no governo atual, mas não está parado na sociedade civil. Universidades como Unicamp, Unesp, USP, Metodista e tantas outras estão formando educadores da pedagogia da humanização. O processo de formação faz com que as escolas de educação infantil não tradicionais sejam a escola hegemônica, porque é exigência das famílias esclarecidas e dos professores em formação e bem informados. A escola conservadora e autoritária cada dia mais perde lugar. Muitos fizeram da escola uma mercantilização para contemplar a consciência dos pais meritocráticos que acham que seus filhos têm que passar
em um vestibular. Filho tem que passar no vestibular da ética, da autoestima, da felicidade, do abraço, do acolhimento, do aprender com paciência a tomar água e comer fruta. Isso é na escola. Isso é humanização. O dia em que ele passar por isso, pode até ir para uma escola autoritária, mas ele continuará fazendo exatamente o que ele aprendeu na primeira infância. Ele sai da escola, mas a escola não sai dele.
A discussão da educação está muito focada na escola. Cobra-se muito da escola e menos dos pais.
A escola pública, por razões históricas, tem em relação aos pais um comportamento muito autoritário e os pais, por sua vez, desenvolveram uma relação clientelista. Tudo que ela falar, a família acata. Recentemente começou uma nova atitude, que é a patrulhadora, quando assuntos como sexualidade, identidade de gênero, religião ou qualquer outro tema polêmico, fazem os pais conservadores irem tirar satisfação. A família terceiriza a educação do filho para a escola na educação infantil e no ensino fundamental, enquanto no ensino médio a terceirização é a da cultura. Infelizmente em casa muitos alunos não têm acesso à cultura, porque os pais não costumam ler, frequentar teatros e mostras culturais. A estatística de leitura do Brasil é de 1,8 livro per capita. Como se quer que o estudante seja um leitor voraz se os pais não leem nada, nem jornal? Escola não é mercadoria e sim um convênio para te ajudar a ensinar o seu filho. Agora a família que terceiriza para a escola o sucesso escolar sem ter cultura é um equívoco. Nós temos que ser para os nossos filhos. O pai tem que ler para a criança desde bebê, a primeira brincadeira tem que ser a leitura. Hoje os pais estão mais focados em levar os filhos para a Disney e não lerem para a criança para dormir. Temos que colocar a leitura como motivação de vida. Fiz isso com os meus filhos, que só foram à escola, à biblioteca e nunca fizeram cursinho, que na minha opinião é uma serenidade psicológica e não preenche lacunas de leitura. A humanização da educação é um processo que envolve escola e família, então quando a família é a primeira escola, a escola necessariamente é a segunda família. A família tem que ser a primeira escola e tem que ter tempo de ir ao teatro, levar no parquinho, brincar, escutar a história que o filho contou, ver a massinha que ele fez. É isso que vai fazer diferença na vida dele. A curiosidade infantil é a capacidade de fazer perguntas. É aqui que começa. A ciência e a humanização não são a resposta que a gente dá, mas sim a pergunta que a gente faz. A escola humanizadora não é um produto. É a que ensina para a vida, para o respeito, a tolerância, para a diversidade. Ensina a guardar o seu brinquedo depois de usar, a fazer o seu leitinho e não ser cuidado por uma rede de luxo de babás.
Qual é a relação da tecnologia com a educação humanizada? Há algum impasse?
A humanidade nunca faz perguntas para as quais ela já não tem embrionariamente as respostas. Todas as inovações tecnológicas demoram tempos para serem assimiladas coletivamente. Nós estamos hoje em uma sociedade na qual o impacto da tecnologia é muito grande, mas é apenas o começo. Precisamos criar mecanismos de limites éticos, que ainda não temos. Existe um modelo de apropriação tecnológica que é um modelo capitalista consumista, que é você ter um celular de última geração, descartar o outro e se intoxicar disso. As pessoas compensam as emoções na internet. Não precisamos ter medo das tecnologias. Precisamos ter coragem para criar critérios éticos, estéticos e pedagógicos para as inovações tecnológicas. O que está faltando é educação tecnológica. A tecnologia está disponível, mas o critério do acesso e da quantidade, depende da criação. As redes sociais estão aí e as pessoas seguem se exibindo. Podemos dizer que é um problema de autoestima e de educação afetiva, que ela tem
que se afirmar o tempo todo. Quem produz autoestima? Pai, mãe, professor e professora. A tecnologia não me assusta e uma escola boa precisa ter educação tecnológica. Criança tem que ter rede social presencial. A coisa que a criança mais gosta é o adulto com autoridade afetiva sobre ele. Elogie, brinque, coloque-a como protagonista que o dia em que você precisar chegar nela e falar algo que não gostou, tenha certeza de que será muito bem assimilado e aceito por ela, porque foi criada uma admiração. Platão disse: “ninguém ama nem respeita quem não admira, ninguém admira quem não conhece. Ninguém conhece quem não se dá conhecer”. O problema do desvario tecnológico é a falta de educação afetiva, emocional e de humanização das famílias.
(entrevista e texto: Aline Queiroz