Salto e a região perdem hoje, 03 de abril, um de seus intelectuais mais brilhantes, o historiador, professor e escritor, ex-secretário de Cultura e ex-vereador, Valderez Antonio Bergamo Silva, que por inúmeras vezes colaborou com a REVISTA REGIONAL, seja com seus Diários de Viagem ou suas crônicas, sempre com textos bem afiados, amplos e inteligentes. Sem dúvida uma das mentes mais brilhantes que tivemos o prazer de ter em nossas páginas. Como homenagem, estamos postando aqui no site este texto, publicado originalmente na edição do Natal de 2016 da Revista Regional:
“O menino que queria abraçar”
Pois nunca abraçara ninguém. E se alguém o abraçou, talvez a mãe, foi antes de desaparecer. O pai, pelo que sabia, sumiu mais cedo, até. Restou-lhe a tia, que o criou, maldizendo os dois. E também nunca o abraçou. Conhecia de abraços o que vira nas ruas, no cinema, na televisão. Achou de uma beleza misteriosa, colossal.
Na igreja falavam muito, mas abraços nunca viu. Nem na escola, tido por estranho, não o chamavam a brincar, quanto menos abraçar. Vizinhos o olhavam de canto, num sussurro sem fim. Brinquedos e livros foram amigos, mas eram outros os abraços que sonhava para si.
Um dia, sufocado do desejo anormal, saiu pela cidade procurando um abraço. Um que fosse, para dar e receber. Não viu outro modo, senão pedir.
Tentou com muitos, que sequer o viram chamar. Só viam os telefones, que tinham às mãos. Desistiu, quando fez alguém tropeçar. E um outro, que lhe disse um palavrão. Mais adiante, quis parar os carros para uma mulher vacilante cruzar. Um motorista lhe fez o gesto que nem sabia o que vinha a ser. Mas que, uma vez, perguntando à tia, levou uma surra que jamais esqueceu. Atravessada a mulher, pediu o abraço buscado. Ela o tomou por ladrão e se pôs a gritar.
Viu, depois, uma moça na esquina. As cores vivas no rosto e nas roupas o animaram a tentar. Ela o olhou, divertida, mas passando um homem, disse que era novo para aquilo e o pôs a correr. Então, buscou ideias nos jornais. Cuidou de manchetes e fotos. Viu homens sisudos de gravatas a discursar, crianças descalças, soldados tombados, florestas perdidas, maltrapilhos nas pontes e filas imensas nos hospitais. Abraços nenhum viu. O jornaleiro, rindo do que ele estava a buscar, o mandou de volta à casa. Que fechava a banca e vinha a noite de Natal.
Fez-lhe companhia o fracasso, sentado à sarjeta sem querer voltar. Que a tia amarga não lhe daria presente algum. Fechou os olhos e ficou. Quando os abriu, cuidou que tivesse dormido. Ou morrido, talvez. Porque banca não havia, nem carros, nem telefones, nem jornais. Não via maltrapilhos, nem gravatas, nem soldados e hospitais. Só uma brancura sem fim, com pálidos rosas e azuis sutis. De nuvens esfiapadas ou compactas, mais belas que quando as via de baixo, deitado a sonhar.
Quando o chamaram, com uma brandura de carneirinho no céu, viu a velhinha que gastava os dias em tachos de sopa. E os dois mendigos que levavam os tachos à praça, onde outros iam comer. O feirante, que trazia as sobras de legumes a cozer. Um velho hippie sereno, artesão das calçadas, que não via sentido ao seu redor. Um estrangeiro cansado e seu filho menino, sem casa e sem pátria onde viver. Dois cães magrelos, que partilhavam pulgas e caminhos. Um gato caolho, que amava poesia e miava sonetos ao luar. Perguntou-lhes como haviam chegado ali. Da mesma forma que você, responderam, mostrando as alvas asas às costas de cada um. Sentindo as suas, viu por fim que estava entre iguais.
Já se dispunha a esvoaçar quando, saído do nada, um velho afável, de vastas barbas, o chamou. Se ele desistira do presente que queria receber.
E o menino, luzindo cores que nem o arco-íris pode ter, ganhou o mais longo e comovido abraço de Noel.
Este texto do escritor e historiador Valderez Antonio Bergamo Silva foi publicado na edição do Natal de 2016 da Revista Regional. Estamos postando hoje, 03 de abril de 2018, em sua homenagem, em razão de seu falecimento.
foto: Arquivo