Fernanda Montenegro é uma unanimidade nacional quando o assunto são as artes cênicas. Público e crítica a consideram uma das maiores damas dos palcos e da TV de todos os tempos. É a única brasileira indicada ao Oscar de melhor atriz, por “Central do Brasil” e a primeira a ganhar o Emmy Internacional (Oscar da TV) na categoria de melhor atriz pela atuação no seriado “Doce de Mãe”. Aos 85 anos, Fernanda já interpretou incontáveis tipos de personagens, mas nada parecido com Teresa da novela ‘Babilônia’ que promete causar turbulência na sociedade conservadora. Conversamos com ela que disparou sem hesitar: “A humanidade é cheia de preconceitos em todas as suas zonas. Não acredito que se deva restringir apenas ao problema da sexualidade. Nós temos sim, uma frente de pessoas que propõem se arriscam e falam o que pensam para reivindicar seus direitos. Essa novela tem esses detalhes de como é natural a vivência entre um casal homossexual”, disse a atriz que acredita ser essencial lutarmos todos juntos contra o preconceito. Falando sobre a carreira, ela afirma que a profissão tornou-se terapia ocupacional e ainda destacou a importância de rever amigos de longos anos como Nathália Timberg, sua principal parceira de cena. “Estar aqui e rever a nossa geração é um encontro não de passado, mas no que a vida poderia nos dar de melhor”, conclui.
REVISTA REGIONAL: Em ‘Babilônia’, a senhora interpreta Teresa. Em algum momento chegou a conhecer pessoas homossexuais para a construção desta personagem?
FERNANDA MONTENEGRO: Ah eu conheço muitos homossexuais, aliás, meu grande amigo e irmão que é o Sergio Brito no qual convivi durante 50, 60 anos dizia que era contra a palavra ‘gay’. Ele acreditava que o maior preconceito que se faz a respeito da homossexualidade foi inventar essa palavra. Quando ele diz que tal pessoa é gay, se livra desta chancela condenada que é homossexual. A humanidade é cheia de preconceitos em todas as suas zonas. Não acredito que se deva restringir apenas ao problema da sexualidade. Está em todos os níveis da sociedade. Nós temos sim, uma frente de pessoas que propõem se arriscam e falam o que pensam para reivindicar seus direitos. Essa novela tem esses detalhes, de como é natural a vivência entre um casal homossexual, com seus totais entrosamentos com os sogros, sogras, netos, bisnetos e os tios que se casam e toda família assiste. O juiz que chega e pergunta se aceita como esposa, assinam documentos e estão casados, entendeu?! Esse é um ganho enorme! Seria muito bom que acontecesse entre todas as cores e nações e todos os estágios sociais.
Já que estamos falando sobre todo tipo de preconceito, existe também em relação ao amor na terceira idade. Como a senhora acha que as pessoas vão reagir em relação ao seu personagem?
Normalmente quem tem esse tipo de preconceito são os jovens porque quem chega na nossa idade, sabe que não é bem assim… A gente espera poder alertar essas pessoas não só do preconceito com a idade, mas da sexualidade também. Hoje eles falam dessa
forma, mas um dia chegarão lá e perceberão que estão errados. Aliás, vamos resumir tudo numa única palavra: preconceito. Nós já estamos cheios porque existem muitos e está na hora de mais uma vez, lutarmos contra ele.
O que a senhora considera mais enriquecedor na sua personagem? Quando leu as primeiras cenas, qual foi a sua reação? Como você recebeu a Teresa?
Em primeiro lugar, ela é uma mulher consciente, mas não é fria, didática ou expositiva. É rica porque vê pelo coração e não pelo cérebro. É um caminho diferente. Eu pretendo fazer minha personagem do coração para o cérebro. Ela sente, reflete e propõe. Não é porque pensou primeiro, se organizou pra chegar lá, não! Ela emana de um sentimento pleno para uma codificação e disposição do seu sentimento para agir através dessas situações. Ela é como todo mundo, porque a filha [Beatriz – Glória Pires] da minha companheira [Estela – Nathália Timberg] é uma bandida que vai fazendo a vida e aprontando muitas sacanagens. Ela sabe tudo. Mas a Teresa tem uma companheira de 40 anos, não vai fazer essa mulher sofrer. Então na medida em que ela for escamoteando e tentando resolver diretamente com o monstrinho, por sua vez minha companheira também terá problemas, porque sabe que a filha é uma perdida, mas segura as pontas porque é mãe e tem neto. De alguma maneira, nós duas temos a mesma conduta. Cada uma querendo salvar a outra do pior da vida.
Essa não é a primeira vez que a senhora trabalha com a Nathália.
É muito interessante porque eu e a Nathália temos a mesma experiência profissional de anos. Nossa formação veio através de uma dramaturgia de primeiríssima qualidade no teatro. Somos antes de mais nada, vocacionalmente definidas como mulheres de palco e de teatro. Tivemos pela vida encontros com grandes atores do Brasil com extraordinários diretores estrangeiros que nos formaram, nos educaram e nos prepararam culturalmente. Esse encontro não é de duas atrizes de alguma idade, que estão desenvolvendo um papel. Quando o Gilberto [Braga – autor da novela] nos escolheu, pelo menos eu o conheço há 50 anos, o mesmo tempo que a Nathália o conhece. Ele foi crítico de teatro e nos viu muitas vezes no palco. Eu e ela já fizemos três ou quatro novelas pela vida a fora juntas. Fizemos dez anos de teleteatro na antiga Tupi e foram perto de 500 teletextos que nós revezávamos durante anos neste elenco, hora com papel maior ou menor… Estamos nos encontrando num canal que temos uma vida. Nós passamos alguns anos juntas, e com outros atores da nossa geração no palco. Onde se ensaiava 12 horas por dia. Fazíamos espetáculo e ensaiávamos a noite para a televisão. Vivíamos brutalmente com os nossos colegas mais do que com a nossa família. Estar aqui e rever a nossa geração é um encontro não de passado, mas no que a vida poderia nos dar de melhor.
A homossexualidade tem sido recorrente nas últimas novelas. Quais outros temas a senhora gostaria de ver também igualmente sendo colocada na televisão?
Por exemplo, amor de pessoas de terceira, quarta ou quinta idade. Recuperação de leprosos de hanseníase compreendeu?! Existem muitas zonas. Sou de um tempo que a maior desgraça que poderia acontecer com um ser humano seria a tuberculose. Se a minha companheira contrai essa doença, seria um pânico porque é praticamente como a Aids. Existem milhões de zonas obscuras do ser humano de defesas e de fragilidades, principalmente quando se trata de uma doença ou de uma visão frágil a respeito de outros que têm suas opções e suas vidas, ainda mais quando não são, entre aspas, pessoas acadêmicas.
Ao longo da sua carreira é possível dizer que já sofreu algum tipo de preconceito?
Se em algum momento tive algum preconceito na vida, eu tive bastante capacidade e raciocínio para acabar com ele, porque tudo é muito forte em torno da gente, e consequentemente termina passando pela nossa cabeça. O problema é não dar chance, autopropor e chegar a conclusão de que esses problemas devem ser sanados. Porque as interferências preconceituosas são tão fortes em cima da gente que infelizmente pode sim, passar pela cabeça. O importante é não dar voz e imediatamente não levar adiante, mas é necessário ter consciência da vida e saber o que você quer dela.
Muitas atrizes a citam também como exemplo de beleza e de envelhecimento. Ao longo dos anos percebemos que a senhora continua a mesma. Como se cuida?
Pra você ver até que ponto nós chegamos. Eu me cuido. Conforme costumo dizer, eu tomo banho, às vezes dois por dia… [risos]. Vou ao dentista, faço meus exames semestrais, procuro não me entupir de comida, eu já comi muito, mas hoje em dia como menos. Quando a gente vai envelhecendo, vai ficando sem fome… Enfim, é viver porque tem uma grande terapia ocupacional que é a minha profissão que eu amo e faço a minha vida inteira. Não fico em casa sentada esperando algo acontecer…
Mas em algum momento da sua vida, chegou a ficar preocupada em fazer alguma plástica ou até mesmo botox?
Plástica não. Há 40 anos eu tinha essas bolsas nos olhos, eu tirei, mas elas voltaram e agora vão ficar por aqui mesmo porque não adianta nada tirá-las. Você começa a ficar assim ou assado. Mexi porque todo mundo ficava pedindo pra eu tirá-las. Elas voltaram maiores ainda. Então é melhor deixar como está.
Mas a senhora procura fazer alguma atividade física?
Eu tenho organismo magro, Deus me deu esse negócio. Trabalho muito e sou ágil, mas às vezes acontece de uma criança nascer com algum problema ou um adulto desenvolver ao longo dos anos alguma doença.
Na verdade existe certo preconceito, com atrizes de mais idade, que vão à praia de biquíni… Muito se fala sobre este assunto…
Todos nós temos um lado demoníaco! Ninguém é bonzinho. As pessoas têm livre arbítrio e consciência para saber o que vai guarda ou jogar fora. Agora, se elas cultuam o lado demoníaco, no qual até tem direito, já que estamos falando em liberdade, acredito que depende da opção de cada um, pelo que me parece. Estou fazendo um discurso…
A senhora falou sobre os anos que conhece o Gilberto Braga. Quando ele te convidou para viver uma mulher homossexual qual foi a sua reação?
Fiquei muito feliz porque é uma temática que muitas novelas vêm abordando. Estava na hora de eu fazer algo desse tipo. E não só na descoberta da sexualidade. Vai ou não casar? Vai ou não ter beijo? Vai ou não ter língua? Já tivemos de tudo! Todas as línguas e jogadas de cama… Já resolveram tudo. E a vida foi juntando e juntando e foi selando e casando. Talvez os heteros estejam se separando aos montes, mas os homossexuais estão se casando aos montes, porque é uma atitude de confirmação religiosa muitas vezes. E também de confirmação civil de que se reconhece o homossexual formando um par para a vida e uma família.
(entrevista a Ester Jacopetti)
foto: TV Globo/Divulgação e Arquivo/Reprodução