Irreverente no mundo da fotografia e envolvido com projetos ambientais, o brasileiro Sebastião Salgado conta em detalhes nesta entrevista especial, sobre sua luta contra o desmatamento, a importância da preservação dos rios nascentes e como surgiu “Gênesis”, seu último trabalho mais que visceral, que expõe não só o contato com comunidades indígenas, mas lugares até então nunca explorados pelo homem. “Foi possivelmente os anos mais ricos da minha vida. Nós somos privilegiados! ‘Gênesis’ para mim fecha um ciclo de histórias com os projetos que fiz anteriormente. As pessoas às vezes falam que eu fui um fotógrafo militante, que fiz fotojornalismo ou fotografia antropológica. É mentira! Nada disso é verdade. As minhas fotografias são a minha forma de vida”, destaca Sebastião. “Este projeto tornou-se referência porque encontrei comunidades exatamente como nós vivemos há 50 mil anos. Algumas delas, inclusive, eu havia sido a segunda pessoa da sociedade ocidental que eles estavam vendo.” A entrevista completa com esse gênio da fotografia você acompanha nas próximas páginas de Revista Regional.
Revista Regional – Que sentimentos passam pela sua cabeça, quando pessoas pela condição social ou sem acesso à cultura, conseguem ver as suas obras? Consegue dimensionar essa importância para eles?
Sebastião Salgado – Essa é a verdadeira expressão da democracia. É um prazer ver as pessoas terem acesso a uma cultura sofisticada, de lazer que normalmente neste país, seria um privilégio somente para as classes favorecidas. Essa é a expressão de suprema democracia. Neste trabalho (Gênesis), aprendi que todas as espécies são racionais dentro da sua natureza. Existe racionalidade profunda nos pássaros, nos leões e até nas rochas. Nós temos que aprender a respeitar tudo isso e viver de forma muito mais doce e menos agressiva. Nós também somos animais e natureza, e podemos perfeitamente conviver com as outras espécies. Uma formiga é tão importante quanto nós. Já existiram espécies muito mais importantes do que a gente, muito maiores fisicamente, como os dinossauros, que já desapareceram há cem milhões de anos, e viveram há 150 milhões. A nossa existe há 500 mil anos. É recente e tomou o planeta como se fosse só dela, todas as outras são escravas. Antigamente, os fazendeiros amavam suas vaquinhas, gostavam da natureza. Hoje, o gado passou a ser um bem comercial. Os animais são criados para serem assassinados. O planeta foi criado com agressividade. Tem também a questão do aquecimento global, as águas estão subindo! Nós estivemos de férias na Bahia, e lá tem uma quantidade de coqueiros que estão caindo no mar, porque a água está subindo. As casas estão sendo abandonadas, porque a areia está entrando. Daqui a alguns anos, não haverá mais oxigênio para respirar. Nós temos que proteger e plantar mais. Acredito que esses sãos os pontos que temos que discutir. Temos que participar em nível comunitário, promovendo a limpeza, redução no consumo de energia… Não precisamos esperar que essa tecnologia seja descoberta nos EUA ou na Europa. O Brasil é hoje considerado um dos países mais sofisticados.
Existe um dilema por trás da sua parceria com a Mineradora Vale. Esse assunto é algo que ainda te incomoda?
É um prazer trabalhar com a Mineradora Vale. Nós temos uma relação privilegiada, porque temos um projeto ambiental no Vale do Rio Doce. Foi com essa parceria que plantamos as primeiras 500 mil árvores. A contradição é a nossa vida! É a maneira e o modelo que vivemos, e o que nós optamos na sociedade de consumo. A demanda de energia que nós temos é incrível. Nós estamos hospedados num hotel, em que não se pode abrir a janela. Nós somos obrigados a usar o ar condicionado. A demanda de energia é brutal na nossa sociedade. Nesta sala, tem uma quantidade enorme de metal. Todo o entorno é feito de metal, e até os automóveis que utilizam a emissão de gás carbônico. O dia em que os automóveis deixarem de ser fabricados, talvez ainda vá consumir muito mais carbono pra desfazer. Esse é o modelo de vida que nós temos que é contraditório. É o grande problema. É claro que vivendo na cidade, a tendência que temos é de nos proteger da poluição, temos medo de uma hora diminuir a oferta de água, eletricidade, uma série de coisas. Existe isolamento de uma casta da sociedade, que se considera um pouco acima de tudo, e com isso começa a julgar. O primeiro julgamento que deveríamos fazer é em relação ao nosso comportamento de vida, do nosso consumo. O sistema industrial foi criado por nós. Quando você tem um pouquinho de dinheiro, seu banqueiro fala em investimentos. Onde você vai investir? Nas empresas. Indiretamente nós somos proprietários dessas empresas. No Vale do Rio Doce trabalhamos com o Governo Federal, Governo de Minas Gerais e Espírito Santo. Uma grande parte dos nossos financiamentos vem de bancos, financeiras e mineradoras. Nós temos que pensar que precisamos mudar o nosso comportamento de consumo. Mas tem que ser todo mundo junto. Se a gente mudar apenas a cúpula da sociedade, a infraestrutura base não vai mudar. O nosso conselho diretor do Instituto Terra é composto de membros do Vale, ex-diretores de bancos, membros da sociedade civil… É necessário que todo o escalão trabalhe para que tenhamos uma sociedade harmoniosa. Não vejo nenhuma contradição em trabalhar com uma mineradora ou até mesmo bancos. Poucas pessoas plantaram 2 milhões de árvores na vida. Nós não temos dinheiro pra isso. Nós temos sim, a capacidade de organização, arregimentação. Conseguimos expressar o que queremos. Essas medidas nunca partirão das empresas porque elas somos nós. A Vale emprega 110 mil trabalhadores, eles têm a mesma preocupação que a gente. São pessoas que têm micro participação nas atividades desta empresa. Se conseguirmos que essas pessoas mudem, vamos conseguir juntos. Que essas empresas sejam ecologicamente sustentáveis e tenham responsabilidade social.
Um projeto como “Gênesis” leva anos para ser consumado. Como surgiu e como foi sua experiência?
A ideia nasceu no Vale do Rio Doce, mas esse projeto de recuperação ambiental, que nós começamos em torno dos anos 90, um momento até bem difícil da minha vida, aconteceu quando eu dei início ao projeto Êxodo. Vivi momentos terríveis em relação à nossa espécie. Cheguei a ver 15, 20 mil mortos numa pilha gigante de cinco, seis metros de largura e cem de comprimento. As pessoas não podiam ser enterradas individualmente… Havia tratores de esteiras para levarem aquele grande número de mortos. Era uma coisa terrível! Mas o que vivi na Iugoslávia foi dificílimo e meu corpo começou a sofrer. Na realidade, eu comecei a morrer, e tive que parar. Voltamos para o Brasil, para o Interior de Minas, pra minha cidadezinha (Aimorés). Num momento em que meus pais passaram a fazenda pra mim, pra Lélia (Wanick Salgado – esposa) e pras minhas irmãs. Todos estavam de acordo em permanecer com a propriedade na nossa família. Quando eu era menino lembrava que tínhamos uma cobertura de mais de 60% de Mata Atlântica – um verdadeiro paraíso! Eu convivi com jacarés naqueles córregos maravilhosos, com as onças… Tive uma vida de sonho! E quando voltamos, ela estava com cobertura florestal de meio por cento… O Vale do Rio Doce é o mais degradado do Brasil. Foi quando a Lélia teve a fabulosa ideia de replantar a floresta. Nós demos início à ideia, e um amigo que era diretor da reserva da Companhia do Vale do Rio Doce, Renato Jesus, o maior plantador de árvores do mundo, dedicou grande parte de sua vida preparando um projeto de recuperação ambiental. No dia em que ele entregou o projeto nós tomamos um susto. Porque para recuperar toda área que tínhamos, era necessário plantar 2,5 milhões de árvores. Incrível! Mas nós aceitamos o desafio. A verdade é que ao reconstruir esse pedaço de terra, da Mata Atlântica, reconstruímos um pedaço das nossas vidas também. Os animais, as árvores, os pássaros começaram a voltar… Já temos 2 milhões de árvores plantadas. Estamos quase no fim. A partir desse momento, surgiu a vontade de voltar a fotografar e fazer uma nova apresentação do planeta, dar a oportunidade de compreender que nós também somos natureza, temos a necessidade imensa de preservar a única máquina desse planeta capaz de transformar gás carbônico em oxigênio, que são as árvores. Não descobrimos até hoje uma tecnologia sofisticada, capaz de fazer esse processo. É importantíssimo e vital pra nossa espécie o replantio dessas árvores. Nesse processo de construir esse mundo moderno, como São Paulo uma grande cidade. Nós destruímos uma grande parte do nosso planeta. E não que a gente vá mudar uma grande cidade como São Paulo em direção à floresta. Nossa esperança é que a nossa exposição dê uma base de reflexão às pessoas. Quem quiser reconstruir o planeta também pode nos procurar no Instituto Terra.
O senhor falou sobre como surgiu “Gênesis”, mas como foi o contato e aprendizado com as comunidades que visitou?
Este projeto (Gênesis) durou oito anos. Eu fiz 32 reportagens que me deram uma média de dois meses passando em cada local que eu ia fotografar. Nós fomos extremamente bem recebidos. O homem é um animal gregário. Quando você chega com pequenos grupos ou sozinho, em uma comunidade, eles te aceitam e você faz parte do cotidiano, torna-se amigo. As fotografias passam a ser como seu respirar. Na realidade você se integra totalmente. O interessante é que a maioria dessas comunidades era pouco agressiva. Por exemplo, a comunidade do Alto Xingu no Brasil não tem nenhuma agressividade. Na escala de agressividade deles, é a última coisa. Inclusive, eles não se alimentam de animais de sangue quente. Eles preferem répteis, tartarugas, peixes, cobras. Na tribo de indígenas zo’é, que trabalhei na calha do norte do Rio Amazonas, a mais ou menos 300 quilômetros da floresta, quando eles se desentendem, colocam um pau a cinco metros de distância um do outro. A comunidade inteira se reúne em volta daquelas duas pessoas, e eles falam sobre o que um fez com o outro. Outras pessoas intervêm para falar que não foi bem daquela forma e que aquilo não passa de um mal entendido. Isso dura umas cinco horas. Eles fazem uma espécie de esvaziamento, e termina numa grande festa. Essas comunidades são de uma doçura imensa. O que me fez compreender que, as agressividades e as guerras não deveriam existir. Esses males surgiram após certa organização espacial da nossa comunidade de humanos. Um dos grandes aprendizados que tive com essas comunidades é que somos velhos de dez, 50 mil anos. O que era essencial pra nós hoje, já era essencial nesta época. Essas comunidades que visitei já eram o representativo do que nós somos. Por exemplo, essa relação com o amor dos pais com os filhos, do homem com a mulher, e da mulher com o homem, a solidariedade, já existiam. Esses, para mim, são os valores mais importantes que nós temos. Já do ponto de vista material, essas comunidades já tinham antibióticos, anti-inflamatórios. Nós só fizemos sistematizar, transformar em processo industrial, em grande escala. Na realidade, nós só temos dez mil anos, e só não temos capacidade de ver, porque a nossa espécie quando vive muito, é em média 70 a cem anos. Mas se tivéssemos essa capacidade, nós compreenderíamos a nossa história e, principalmente, que nós somos natureza. Quando comecei a fotografar nas montanhas do Alasca, eu saia de madrugada -por volta das três da manhã- e chegava às oito. Eu sentava e ficava ali em comunhão com o meu planeta, na tentativa de compreender as notas, os ventos, as sombras. E a partir daí eu entrava em total comunicação. Você passa a ser natureza e compreender essas coisas. Essa deveria ser a experiência que todos nós deveríamos presenciar. As pessoas que moram aqui em São Paulo, não moram no Brasil que é diferente. O Brasil é aqueles índios, matas, onças, é lindo, gigantesco e fabuloso. Eu tenho muito medo, porque uma hora o planeta irá nos expulsar. Espero poder reconstruir a vida de forma, a ser natureza outra vez, e ter o poder que essas comunidades têm em relação ao planeta.
O senhor comentou sobre o replantio de árvores, mas há outros projetos no qual está envolvido?
Estamos iniciando o projeto Olhos d’água, que tem como objetivo recuperar o maior rio que nasce e morre no Centro-Sul do Brasil, que é o Rio Doce. A nossa bacia é mais ou menos do tamanho de Portugal. Temos nove rios que o compõem e uma parte deles, a partir de 2025 a 2030, deixará de correr, porque nós estamos cortando demais as árvores. O rio está morrendo. Nós temos aproximadamente 350 mil águas que compõem o rio. A Vale do Rio Doce é nosso aliado já faz um tempo, e o Banco do Brasil também. Nós tivemos uma reunião com a presidente Dilma (Rousseff). Ela ficou entusiasmada, e quer que o governo brasileiro através do Ministério do Meio Ambiente participe desse projeto, que sirva de protótipo para recuperação de outros rios brasileiros. Nós temos a tecnologia e sabemos fazer. Existe uma boa vontade! A presidente quer o projeto. Organizamos uma reunião com as estatais, mas fazer com que a ideia seja iniciada, que consiga passar pela burocracia, vencer a pessoa que foi nomeada, e cumprir as ideias que com certeza vai varar administrações, não será fácil. Nossos maiores aliados neste projeto são as Prefeituras. O prefeito também compreende a situação, até porque ele tem uma propriedade rural e sabe que a água vai acabar. Depois chegamos ao Governo do Estado e as administrações federais. É a mesma coisa em nível planetário. A gente aponta as Nações Unidas como uma enorme máquina burocrática, que age mal e tem uma reação lenta. Mas todos os burocratas que estão lá são brasileiros, chineses, americanos… Nós criamos uma máquina infernal e lenta em toda a sociedade. Até ela reagir e fazer compreender vai demorar. Nós temos que aceitar que as coisas aconteçam em longo prazo. Nós, do Instituto Terra, estamos tentando. Quando uma empresa não consegue participar, nós criamos algo. Nós gostaríamos que eles tivessem uma participação maior, mas por ser uma máquina burocrática, não é possível dedicar grande quantidade de recursos a uma só organização não governamental. Ela seria apontada, os jornais atacariam, teria o privilégio dos Salgados. Nós somos obrigados a oferecer ao Banco do Brasil um produto para ser lançado comercialmente para captar recursos. A mineradora Vale está financiando 500 fontes de água, o que significa um rio de tamanho médio. É considerável, mas já estamos discutindo com a empresa que este projeto dá um retorno incrível. E estamos cogitando mais 500 fontes para daqui um ano. Somos obrigados a manter uma luta permanente. Não é fácil, mas é possível. Conseguimos plantar dois milhões de árvores e ninguém nunca fez isso no Brasil. Conseguimos trabalhando com todos esses agentes.
Como o senhor conseguiu atingir pontos remotos, no meio da natureza selvagem, para conseguir capturá-la através de suas lentes?
Foi necessário uma grande organização. Temos uma equipe em Paris que concebeu inicialmente o projeto. Sempre fui um fotógrafo social, sempre retratei pessoas a vida inteira. E pela primeira vez, fui trabalhar com outros animais, que até então eu havia fotografado apenas nós. Eu não sabia fotografar e tive que me preparar. Toda a equipe precisou estudar, porque a nossa relação, até então era com a Unicef, com o alto comissário de refugiados, médicos e fronteiras. Foi quando começamos a entrar em contato com o Patrimônio Mundial, com a Unesco e outras instituições ambientais. Levamos dois anos nos preparando e a partir daí tivemos que identificar o que iríamos capturar de imagens. Tivemos que estudar muito, não foi brincadeira. Vi todos os livros de figuras que já haviam sido feitos, dentro do ponto de vista, que a gente queria cobrir. A partir deste momento começamos a procurar os financiadores. O início dos financiamentos foi exclusivamente de empresas, porque até então nós só tínhamos trabalhado com revistas. Mas com a entrada da internet na imprensa, o poder financeiro caiu. A primeira matéria que fizemos foi em Galápagos. Lá nós precisamos de autorização especial, que não fosse apenas para turista, mas que eu pudesse ir a qualquer lugar. Descobrimos que antes de iniciar este projeto, teríamos que trabalhar muito antes de chegar o momento de fotografar. Fiz uma viagem ao norte da Etiópia, em que fui até o Parque Nacional, caminhei 850 quilômetros a pé numas montanhas em que eu passei três vezes acima de 4,2 mil metros. Nós tivemos que nos organizar, porque passaríamos por lugares que nunca ninguém da civilização ocidental havia passado. Parti com um grupo de 16 jumentos e 15 pessoas viajando comigo. Quando você aluga o jumento, o dono viaja junto, é a única fonte de renda que ele tem. Havia uma equipe em Genebra que organizava as expedições científicas. Foi uma viagem experimental que ninguém havia passado. Sempre viajo com telefone de satélite, e consigo falar em qualquer ponto do planeta. E com GPS passava a cada dois dias a minha localização para Genebra. Eles olhavam no mapa e nos direcionavam. Tivemos que contar também com a força aérea inglesa para sair do norte da Inglaterra e voar para as Malvinas, que é um lugar totalmente militarizado. Tive que trabalhar com quase três anos de antecedência pra tudo. Foi complicado porque ninguém mora lá. O barco estava reservado por dois anos para o BBC, um canal sobre natureza, e o outro para um canal americano. Era caríssimo, que custaram em média 2 mil euros por dia de aluguel. Mas nós conseguimos investimentos. Passei em média oito meses por ano viajando. Passava dois meses numa reportagem e um mês me preparando para ir para o seguinte. Foi possivelmente os anos mais ricos da minha vida. Nós fomos privilegiados! “Gênesis”, para mim, fecha um ciclo de histórias com os projetos que fiz anteriormente sobre todas as guerras na África, os projetos com os trabalhadores, refugiados… Só aprendi o que tenho hoje, para poder fazer “Gênesis” no final. Fui fazer essas fotografias não como antropólogo, sociólogo ou jornalista. Fui porque tive um momento de prazer. Eu quis ir em direção ao planeta. Não fui com nenhuma missão pra convencer alguém. O momento de fotografar as comunidades e até mesmo as paisagens e os animais foram importantes pra minha vida. Como quase todos os outros projetos que fiz. As pessoas às vezes falam que eu fui um fotógrafo militante, que fiz fotojornalismo ou fotografia antropológica… É mentira! Nada disso é verdade. As minhas fotografias são a minha forma de vida. Ou porque tive um grande prazer de ir, ou uma grande revolta. Ou simplesmente porque achei as coisas bonitas, ou porque me revoltaram profundamente. Quando fui fotografar “Gênesis”, eu estava neste momento na minha vida. Não me transformei em fotógrafo de paisagem, nem de animais. Foi apenas um projeto. Seguramente vou continuar a fotografar. Eu havia dito pra muitas pessoas que possivelmente este seria o último projeto. Este será o último nesta instância, deste tamanho. Fisicamente já não estou em condições como antes. Vou continuar fotografando sociais. “Gênesis” tornou-se referência, porque encontrei comunidades exatamente como nós vivemos há 50 mil anos. Algumas delas, inclusive, eu havia sido a segunda pessoa da sociedade ocidental, que eles estavam vendo. O primeiro teria sido um americano. Eles imaginavam que eu fazia parte de um clã de peles claras. Nunca pensaram que uma sociedade como a nossa vivessem entre milhões de pessoas. A tribo Zo’é havia 275 índios. Um dia conversando com eles, expliquei sobre um avião que passava por ali, que havia 300 pessoas. Foi difícil imaginar aquela quantidade ali dentro. O maior número da humanidade pra eles é 275 pessoas.
Como tem sido a sua parceria com o governo e a iniciativa privada?
Às vezes a gente simplesmente aponta que o governo não fez ou não faz. Ou que eles não têm capacidade de ideias, mas o governo é representante da sociedade. Ela se comporta desse jeito. Alegamos corrupção, mas não é apenas no nível político, e sim da classe dominante desse país. O aeroporto de Vitória que foi lançado há sete anos, todo o dinheiro que foi designado desapareceu. Hoje existe uma pesquisa para tentar descobrir o que aconteceu. Ali não foi o governo e sim as empreiteiras que deveriam ter construído o aeroporto. Hoje quem consegue chegar às universidades federais? São os filhos da classe dominante, que tem dinheiro para pagar cursinho. A universidade gratuita que deveria ser de todos, pertence a uma classe. O que ela está fazendo? Roubando o direito de todos que deveriam estar ali. Isso acontece na nossa sociedade, e a gente continua a apontar o governo. Quem é economista sabe que existe uma grande capacidade financeira de investimentos, mas que o governo não consegue porque não tem quadro, não tem infraestrutura, não tem educação, e não há investimentos neste país há 500 anos. Nós somos incapazes de prever a demanda de portos, aeroportos e estradas no país que não está crescendo. Estive trabalhando na China, lá eles tiveram um governo duro, central, repressivo, mas tomaram conta da infraestrutura. O que tem de autoestrada na China… Estou fazendo algumas fotografias de café, já há oito anos, e estive em alguns povoados. Cada grupo de três aldeias tinha uma retroescavadeira à disposição deles. Eles possuem uma pista viária não asfaltada, mas pavimentada. O Brasil tem vias de chegar lá e vai conseguir, mas esse gargalo histórico que foi criado vai ter que ser resolvido. Fiz um trabalho recentemente com um grupo indígena Awá no norte do Maranhão, que está sendo profundamente ameaçado, agredido. A madeira está sendo roubada. Dentro dessa reserva, há três grupos que ainda não tiveram contato com a civilização ocidental. Segundo a Funai, na Amazônia brasileira, existem mais de cem grupos que ainda não foram contatados. Esse é um privilégio muito grande da nossa sociedade. Nós temos obrigação de proteger e resolver essa grande contradição que provocamos. O ex-presidente Lula colocou 35 milhões de brasileiros, que estavam abaixo da linha da pobreza, para a classe média. Todo mundo está satisfeito! Estão comprando mais carros e ajudando a engarrafar ainda mais a cidade. Mas era essa a ascensão e foi assim que o pessoal da esquerda, no Brasil conseguiu dar acesso às classes menos privilegiadas. Nós chegamos da Indonésia esta semana, os rios estão bastante poluídos. Este país sofre o mesmo processo que estamos vivendo no Brasil. A Índia acabou de lançar um automóvel que custa 2 mil dólares. Todo mundo vai comprar. Esse foi o modelo que nós criamos, e quando digo nós, é nós todos! Como vamos circular de carro daqui a dez anos em São Paulo? Como está a infraestrutura de transporte coletivo? As cidades brasileiras não têm investimentos em transporte público. Nós acusamos muito os grupos reacionários, proprietários rurais… Mas são as pessoas que às vezes não tiveram a possibilidade de ter acesso à informação. No Vale do Rio Doce quando começamos foi dificílimo! Eles não acreditavam no projeto e na primeira reunião que nós tivemos, na Câmara dos Vereadores com um grupo de ecologistas, colocaram fogo na fazenda. O fogo não começou de fora, e sim de dentro, ou seja, alguém entrou. Uma agressividade imensa contra uma ideia ecológica, que parecia pretensiosa. Quando fazemos reuniões no Instituto, nós temos mais de 500 proprietários rurais. Levamos a eles informação, participação ambiental, e hoje temos filas de fazendeiros pra gente recuperar suas fontes de água. Se nós conseguirmos integrar agentes, como por exemplo, o Sesc, as Secretarias de Educação, escolas, universidades, conseguiremos levar essa ideia adiante. Vamos ter que fazer, não sei se levará mais ou menos tempo!
entrevista e texto Ester Jacopetti
fotos Divulgação/Taschen e ©Ricardo Beliel/Divulgação