Uma narrativa bem humorada diz que o inferno enviou ao mundo um jovem demônio, com a missão de vistoriar o andamento das coisas e fazer um relatório. Voltando, o capeta pediu uma audiência urgente com Belzebu. Diante do chefe, disse apavorado:
– Há um sujeito de barbas brancas, vestindo túnica e levando um cajado, que está pregando a Verdade pelos caminhos do mundo.
Belzebu continuou a dar suas tranquilas baforadas de cachimbo e nem se importou. O enviado insistiu, aflito:
– Mas, senhor, é um perigo, estou dizendo que ele sabe a Verdade e a está ensinando.
Então Belzebu, calmamente, falou:
– Sossegue, meu jovem. No devido tempo incentivaremos os seguidores dele a criarem uma religião. Então, tudo ficará bem.
Humor à parte, um olhar sincero sobre o mundo não faz outra coisa senão legitimar o fundo de verdade da anedota. Poucos outros interesses ou exercícios humanos foram capazes, ao longo dos milênios, de semear mais brutalidade, discórdia, morte e sofrimento do que a prática religiosa institucionalizada. E nenhuma outra atividade se prevaleceu mais da ignorância e da fragilidade da condição humana do que ela.
O que mais impressiona nesse fenômeno é a sua capacidade de resistir à racionalidade e ao consenso em favor da paz do indivíduo e da harmonia mínima entre os homens. Ou seja, exatamente o contrário do que apregoam e prometem livros sagrados, sacerdotes, gurus e liturgias. O sectarismo religioso, como se tem visto no Brasil e no mundo, converte a crença em ferramenta para assinalar a diferença, e não para promover a igualdade. Assemelha-se, por esse caminho, às bandeiras e hinos nacionais, aos distintivos dos clubes esportivos, aos estandartes dos batalhões armados, às mais rancorosas pichações que tribos urbanas utilizam para firmar supostas superioridades.
Se em outros países vemos a opressão de mulheres, a perseguição a intelectuais e as chacinas movidas pela religião, o cenário brasileiro não se mostra mais animador. É sabido que certos conceitos contemporâneos, como democracia, igualdade de direitos, liberdade de expressão e condição laica do Estado, não passam de complicadas abstrações mentais para grande parte das pessoas. São de difícil assimilação. Mas, nesse sentido, os séculos de analfabetismo, de exploração e violência, sob os quais foi mantida a maioria da população brasileira, levaram este país a extremos de atraso. Juntam-se aqui características de formação histórica e cultural, mais as condicionantes citadas, a educação pública falida, a permissividade e lentidão das leis e do sistema judiciário. Falta apenas acrescentar a facilidade com que grupos religiosos tomaram de assalto fatias da mídia. O resultado é um panorama medieval, algo que beira posturas vividas nos piores tempos da Inquisição Católica, das conquistas do Islã, da boçalidade puritana na América do Norte, dentre outros exemplos.
Em nome da liberdade de credo e de expressão, o Estado brasileiro se mostra impotente – quando não conivente – com os ataques feitos a esses mesmos direitos e a outros, igualmente elementares. O país se habitua com absurdos que pisoteiam a Constituição da República. Dessa lentidão em reagir se prevalecem, por exemplo, pastores evangélicos em sua cegueira furibunda, quando atacam a orientação sexual de gays e lésbicas, ou quando incentivam a perseguição às religiões de matriz africana. Ou como no caso da proliferação de ridículas placas nas entradas de algumas cidades, dizendo que o lugar pertence a um credo que não é o de todos os cidadãos. Fiéis anunciam à imprensa que irão boicotar uma determinada novela televisiva porque ela menciona a figura de Jorge da Capadócia, venerado por outros brasileiros. E líderes religiosos organizam teias nas brechas da legislação, para um enriquecimento escandaloso, nos pilares da impotência do Estado e da ignorância dos fiéis.
Para que não se pense que apenas no seio do cristianismo protestante se encontram exemplos, perceba-se a insistência do catolicismo em condenar alguns métodos contraceptivos ou de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, além da jocosa posição acerca da homossexualidade, que é tolerada como um fardo, desde que fique silenciosa e oculta. Isso não é prudência, não é questão de consciência ou de fé. É atentado vergonhoso contra o humano.
O fenômeno religioso é inerente à caminhada do homem. Nasce de seu íntimo e assim continuará a ser. E também é certo que ele é necessário para a maior das partes das pessoas, ainda. A existência das religiões, das igrejas, é mesmo benéfica à sociedade, em muitos casos, talvez evitando distúrbios maiores. Sua dispensa ainda não seria assimilada pela multidão. Mas é preciso lembrar que os abusos, a intolerância o ridículo a que estamos assistindo, foi condenado ainda no século XVIII pelos iluministas. Há mais de 200 anos se estabeleceram ideias que ainda hoje são diariamente ameaçadas ou ignoradas. Enquanto isso ocorre – e voltando à anedota – Belzebu desfruta do cachimbo. Sabe que o tempo um dia o vencerá, mas que isso ainda vai demorar.
Contudo, não nos é dado calar. Mesmo que dependamos da passagem do tempo, do amadurecimento social. Mesmo que alguns tenham de se expor à fúria da ignorância e pagar um alto preço pessoal, é preciso reagir, pelos meios lícitos que se apresentarem. Porque todo avanço, toda vitória, na marcha penosa da elevação da humanidade sempre se deu porque alguns se ergueram e disseram não. Os que vêem e podem fazê-lo, façam-no sempre, por mais densa que seja a treva ao redor.
Valderez Antonio Bergamo Silva, bacharel em Direito e mestre em História, ocupa atualmente a Secretaria de Cultura e Turismo de Salto, e escreveu este artigo especialmente para esta seção de Revista Regional.
foto: Microfoto