Partindo do princípio que a memória é fascinante e pode nos trazer surpresas saborosas, a professora doutora Marly Therezinha Germano Perecin – uma das maiores conhecedoras da história paulista – decidiu, certa vez, “abrir o seu arquivo pessoal, filtrando as suas lembranças” para produzir alguns textos experimentais, cujas características fugiam um pouco das monografias, as quais ela já estava habituada.
Desde aquele momento, sua relação com o próprio passado adquiriu contornos de emoção, admiração e amor – os ingredientes básicos do romance – os quais se difundiram por uma trilogia sobre o Vale Médio do Tietê e o Velho Oeste Paulista. A hesitação inicial cedeu espaço para o envolvimento “de alma e coração”: à medida que as partes se sucediam e se transformavam em capítulos, a resistência era definitivamente vencida.
Aos poucos, Marly percebeu que personagens de ficção correspondiam a sínteses culturais daqueles que se aconchegavam em sua memória pessoal, o que a deixava feliz, sempre que relia àquelas páginas, que tinham como pano de fundo as transformações vividas sociedade do Velho Oeste Paulista, no século XVIII. Dessa região, faz parte o município de Itu, que, neste fevereiro, celebra 402 anos de fundação.
Nesta entrevista exclusiva à Regional, a autora explica como a sua formação acadêmica ajudou-lhe a ampliar o alcance dos assuntos discutidos em suas obras. Segundo ela, sua origem lhe proporcionou contatos extraordinários com os sucessores dessa sociedade que herdamos. Por essa razão, não é difícil acreditar que escrever sobre esse mundo – no qual vivem seus irmãos no tempo, eternos amigos – é, para ela, uma experiência capaz de renová-la. Sua paixão pelo que faz também fica evidente em outros trechos desta conversa, cuja íntegra pode ser lida a seguir.
Revista Regional – Textos de sua autoria foram reproduzidos no livro “Memória de Itu”, dos autores Jair de Oliveira e Luís Roberto de Francisco. Que lembranças a senhora guarda da cidade?
Marly Perecin – A memória é uma dimensão fascinante e suas funções associativas nos trazem surpresas, as mais saborosas. Em minha vida guardei um arquivo pessoal e, nas muitas vezes em que me abalroei com situações inusitadas, recorri a ele, sem nunca confundir com a memória histórica que trata dos registros documentais. Porém, houve época em que tentei a experiência do Romance Histórico e vi o quanto as minhas reservas de gerações de contadores de causos e lembranças, vivências de uma enorme parentela ao longo do tempo e episódios de um passado real, estavam intimamente relacionados com a história cultural do Oeste Paulista. Quando a oportunidade ocorreu, as lembranças que afloravam, eu as filtrei, organizei e reutilizei em favor dos textos experimentais de um novo trabalho, totalmente diverso das monografias às quais estava treinada. O sabor piracicabano, ituano, sorocabano, o conhecimento do universo da civilização do agro, reagiram sobre a memória do tempo real passado, estimulando a criação literária, fluindo no discurso do romance histórico. A relação com o passado adquiriu contornos de emoção, admiração e amor – os ingredientes básicos do romance – os quais se difundiram por uma trilogia sobre o Vale Médio do Tietê e o Velho Oeste Paulista.
Ainda sobre essa trilogia – que tem como cenário algumas cidades do Interior paulista – como surgiu a ideia de unir literatura e história? Quais as principais dificuldades nesse processo, se existirem?
A experiência do romance histórico se achava latente, aguardando motivação e a oportunidade quando me decidi por “Candeias em Espelho D’Água”, em um momento especial da minha vida. Hesitei, a princípio, mas não resisti quando a produção começou a tomar as formas de capítulos. As partes se sucederam e me encontrei envolvida de alma e coração no universo cultural do agro no Velho Oeste Paulista, usufruindo um prazer renovado a cada episódio da construção narrativa. Os personagens de ficção correspondem a sínteses culturais daqueles que se aconchegavam em minha memória pessoal, trazidos de fora pelas incontáveis versões dos causos e assucedidos de antanho. São personagens sintéticos com caráter de verossimilhança porque competem com os reais, com os quais se parecem na memória do tempo real passado. Tive sorte ao sintetizá-los, e eles me fazem feliz quando releio as páginas dos romances da trilogia. Percebi que “Candeias em Espelho D’Água (1777-1845)” encerrava um ciclo na história paulista, mas a saga do agro só ficaria completa se lhe acrescentasse os prolegômenos [introduções], plantados no século XVIII. Nasceram mais dois romances históricos, “Ypié, Maria dos Anjos (1723-1767)” e “As Águas do Adeus (1767-1777)”; ambos sobre as duas temidas bocas de sertão – Piracicaba e Yguatemi – nos quais se expõe a crítica ao governo do Morgado de Mateus, sob a ótica da política imperialista portuguesa, com seu cabedal de erros, fracassos e desgastantes sacrifícios à sociedade do Velho Oeste Paulista, no século XVIII. No espírito deste Brasil Colonial, prenunciamos o vigor da sociedade que transformou o Oeste Paulista e lhe indicou os rumos, sob a Monarquia em direção à República.
O início do século XIX – considerado, por estudiosos, “um dos momentos mais significativos da história de Itu” – foi retratado em alguns de seus textos. Trace um panorama sucinto dos principais acontecimentos que marcaram aquele período. De que maneira eles se interligam a outros momentos importantes, como, por exemplo, a Proclamação da República?
Escrevi um trabalho, “A Escola das Liberdades Paulistas”, sobre os 186 anos da outorga do título de A Fidelíssima a Itu, concedido pelo primeiro Imperador do Brasil, em tributo de reconhecimento à defesa da causa da liberdade sustentada por parte das elites do agro. Trata-se de uma análise da evolução sociopolítica paulista, a partir da capital histórica do Vale Médio do Tietê, Itu. Em momento da chamada Confederação das Vilas (1822), episódio de resistência política, com base na ideologia liberal, contra o movimento conservador deflagrado em São Paulo (capital), a bernarda do coronel Francisco Inácio de Sousa Queiroz. A defesa da representação cidadã contra os chumbistas logrou repercutir nas comunidades satélites das duas vilas mais importantes, Itu e Sorocaba, assinalou a tomada de posição do Oeste em favor da Teoria Pactual de Locke, do Contrato Social e da ideologia revolucionária que galopava nas Américas. Exemplos dos modos de pensar e posicionamentos por parte das elites liberais do agro estiveram marcantes nos primeiros pronunciamentos eleitorais na capital e na representação paulista enviada à Assembleia Constituinte do Porto, na Constituinte do Brasil, nas eleições camaristas das vilas, no Congresso, atingindo o seu ponto culminante por ocasião das reformas do Ato Adicional e do Código do Processo Criminal, elementos desencadeantes da Revolução Liberal de 1842, também conhecida por A Guerra de Sorocaba, ou melhor, da Civilização do Agro, no Oeste Paulista. Foi o momento da feroz resistência ao centralismo monárquico, o qual convulsionou todo o Oeste Paulista e levou ao final inglório da batalha de Venda Grande (Campinas) e aos anos de perseguições políticas, que as famílias liberais jamais se esqueceram. Esta foi a sua motivação para o comparecimento expressivo, ao sobradão de Carlos de Vasconcelos de Almeida Prado, onde se promoveu a Convenção Republicana de 1873. De certa forma, os antigos chimangos de 1842 chegaram à República em 1889 com os republicanos históricos. O seu pensamento matricial pode ser encontrado nas falas das suas mais representativas lideranças do Oeste Paulista, o padre Diogo Antônio Feijó na peça “Eu declaro ao Senado e à Nação”, de 1843 e o Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar em seu “Manifesto Político” de 1845.
De que maneira a sua formação acadêmica permite ampliar o alcance dos temas abordados em suas obras?
Sou pesquisadora nata, com prática no trato documental, minha formação acadêmica permitiu-me incorporar metodologia aos trabalhos e uma visão teórica aos seus conteúdos. Escrevi diversos trabalhos acadêmicos: “A Síntese Urbana (1822-1930)”, “O Instituto Baronesa de Rezende”, em 1994, “Os Passos do Saber: A Escola Prática Agrícola “Luiz de Queiroz” (O Esforço para a implantação do ensino técnico de segundo grau na Agricultura, 1891-1911)”, em 2002. Escrevi diversos ensaios, o último será revelado em breve: O Resplendor do Vale (A Igreja Matriz de Nossa Senhora Candelária, em Itu). Também realizei duas experiências muito felizes, a primeira no teatro, “Alexandrina in Concert” e a segunda na seriação didático pedagógica “Piracicaba Conhece e Preserva”, em dez volumes e em parceria. Quero lembrar que a minha formação acadêmica me permitiu teorizar e dar praticidade a tudo que aprendi empiricamente nesse mundo antigo de paulistas sertanistas, sitiantes, agrossenhores e tropeiros; a minha própria origem me proporcionou contatos extraordinários com os sucessores dessa sociedade que herdamos. Escrever sobre esse mundo traz-me a renovação da experiência prazerosa, destes meus irmãos no tempo, eternos amigos.
Por que é tão importante que os municípios preservem, e mais do que isso, revisitem a sua história? Como a união da sociedade civil, poder público e meio acadêmico pode ajudar a concretizar esse objetivo?
Você fala em revisitar a história como se ela fosse um painel? Não é assim. O que mais se aproxima dessa colocação é o Romance Histórico, no momento em que a prática do ler e olhar se ajunta à do sonhar, compondo o que se poderia idealizar como algo a que chamaremos de “cinema da memória”, delicioso de assistir, gerador de um pertencimento lúdico, e instrumento de manipulação para o bem e para o mal. No primeiro e melhor dos casos, será facilitador de aprendizagem, da leitura inteligente e criativa na Educação, instrumento cultural privilegiado, elemento de construção de identidade nacional e de aproximação dos povos para um mundo renovado.
entrevista e texto Piero Vergílio
foto Arquivo pessoal