Como o simples ato de doar órgãos ajuda milhares de pessoas a ter uma nova vida
Aos 24 anos, Fernanda Massaro Silva Cardozo, começou a sentir um cansaço muito grande. “Lembro que para subir as escadas da casa onde morava, tinha que parar no caminho para poder respirar”. O que para alguns parecia preguiça da jovem, para ela era sinal de algo mais grave. “A princípio achei que era algum problema no coração”, recorda.
Mas o que surpreendeu a todos foi que o cansaço era um sintoma da falta de atividade de seus rins. “Até hoje não descobri a causa para os meus rins terem parado. Não tenho históricos na família, e os exames que fiz não mostraram o porquê”. Fernanda é mais uma paciente dos 34.640 que esperam um transplante de rim, de acordo com o Ministério da Saúde.
A luta da jovem já teve capítulos felizes. Quando descobriu que precisaria fazer o trasplante de rim, seu pai logo se prontificou a fazer todos os exames, que para a felicidade da filha, se mostraram compatíveis a ela. “Do momento em que descobri que precisava fazer o transplante até a cirurgia demorou seis meses”, conta Fernanda, que passou pelo procedimento no Hospital do Rim e Hipertensão de São Paulo. Acontece que devido a uma forte pneumonia, em 2009, o rim saudável de Fernanda parou de funcionar novamente, e a jovem precisou entrar na fila de espera por um transplante, e voltar para as sessões de hemodiálise. Desde então, Fernanda figura entre os que estão no aguardo para uma vida normal.
Lutando junto com os pacientes que necessitam de um transplante, e até desbravando os caminhos para o procedimento, a Ong Gabriel (Grupo de Atuação Brasileiro para Realização de Transplantes Infantis e Estudos do Tubo Neural), sediada em Indaiatuba, é mais um instrumento na conscientização da população e da classe médica, sobre a importância de doar órgãos, e de previnir as doenças que podem resultar em transplantes. “Um exemplo de prevenção são com as mulheres grávidas que devem fazer uso do Ácido-fólico – vitamina B9 – durante a gestação para evitar o nascimento de crianças com má formação cerebral”, explica a fundadora e presidente da Ong Maria Inês Toledo de Azevedo Carvalho, que acrescenta que esse procedimento pode reduzir em até 80% o risco de uma gestação com esse tipo de malformação. Dados mostram que em cada 800 crianças nascidas no Brasil, uma é portadora de Defeito do Tubo Neural (DTN).
Ainda segundo dados do Ministério da Saúde, 23.756 esperam por uma doação de córnea, 305 de coração, 4.304 de fígado, 124 de pâncreas, 161 de pulmão e 576 de pâncreas e rins. Dados datados de 2009.
A doação de órgãos no Brasil ainda é um tabu para muitas pessoas; geralmente essa questão é vista com desconfiança, mas para quem está em uma fila de espera, e até para quem luta por esses doentes, esse preconceito precisa acabar. “Conheço muito doador vivo que nunca teve problemas em doar um rim. Meu pai mesmo vive normalmente com um rim apenas”, fala Fernanda.
“Fazemos muitas palestras em escolas e até hospitais conscientizando as pessoas que doar órgãos é um ato de amor, e extremamente necessário. Não é um procedimento feito sem ter a constatação exata da morte encefálica da pessoa”, completa Valdir. Pensando nessa nova consciência, a Ong Gabriel elaborou o Trote Solidário, junto à Fatec (Faculdade de Tecnologia) de Indaiatuba, que teve uma grande e importante repercussão. “Fomos convidados para dar palestras em algumas Fatecs do Estado, com a possibilidade de se estender para as demais”, orgulha-se o diretor executivo.
Caminho da doação
Para se tornar um doador de órgãos, é necessário que o hospital responsável pela internação do paciente comunique o Serviço de Procura de Órgãos e Tecidos (Spot), que são os responsáveis por fazer todos os exames, e iniciar os protocolos para ter a certeza da ausência da atividade cerebral. Constatado este fato, a família necessita autorizar a doação, e a partir daí a CNDCO (Central Nacional de Doação e Capacitação de Órgãos) é acionada para a retirada dos tecidos e órgãos a serem doados.
“É muito válido as pessoas saberem da importância da doação de órgãos. Já ouvi casos de que uma pessoa ajudou dois irmãos a viverem de novo. Sempre quando tem campanhas, as doações aumentam, mas elas precisam ser constantes”, fala Fernanda.
Doações de córneas não necessitam que o paciente tenha morte encefálica, e doação de Médula Óssea e Rim, podem ser de doadores vivos.
Ong Gabriel
A Ong Gabriel surgiu da tentativa de doação dos órgãos de Gabrielle de Azevedo Carvalho, filha de Maria Inês e Valdir de Carvalho, diretor executivo da Ong, que nasceu com anencefalia (ausência de cérebro), em 1998. “Na época nós não sabíamos que tomando a vitamina B-9, podíamos ter evitado esse quadro. Nosso caso foi divulgado nacionalmente e até internacionalmente, porque fomos os primeiros pais a lutar na justiça para poder doar os órgãos de nossa filha”, relembra Maria Inês.
O casal constatou a anencefalia através de exames pré-natais, no terceiro mês de gestação. Tomaram a decisão de prosseguir com a gravidez, na esperança de ajudar outras crianças que aguardavam por um trasplante. No entanto, a doação foi rejeitada pela Central de Transplantes, alegando-se que essas crianças não poderiam ser doadoras, pois não tinham como receber o diagnóstico de morte encefálica, por não possuírem ‘cérebro’. A Lei n° 9.434 que regulamenta a doação de órgãos no Brasil, não prevê esses casos.
A partir daí o casal se engajou na luta pela normatização das doações de órgãos de bebês nascidos com anencefalia. Ao tomar conhecimento da situação dos transplantes no país, ampliaram a atuação ao incentivo irrestrito de doação de órgãos e tecidos.
Atualmente no Brasil, de acordo com a portaria GM/MS n.º 487, de 02 de março de 2007, ficou concluído que: “A retirada de órgãos e/ou tecidos de neonato anencéfalo para fins de transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de parada cardíaca irreversível”.
Apesar de finalmente uma legislação específica reconhecer o neonato anencéfalo como um potencial doador de órgãos, ainda há muitas dificuldades para realização do procedimento, pois o critério adotado tem inviabilizado e/ou impossibilitado a doação e o transplantes para esses casos.
Hoje, a Ong faz diversas campanhas como a de prevenção da DTN, ajuda na Campanha Nacional de Doação de Órgãos e Tecidos, realiza a Campanha Municipal de Incentivo ao Cadastramento de Doadores de Médula Óssea, além da criação do Primeiro Salão Nacional de Humor sobre Doação de Órgãos. “Fora essas campanhas mantemos um site que registra 1.300 acessos diários, sendo que 85% são de novos visitantes de 57 países, ajudamos na formação de leis municipais, como a Lei de Incentivo à Doação, e participamos do Conselho Municipal de Saúde”, finaliza a presidente.
texto: Yara Alvarez
foto: Microfoto