Autor de “1808” e “1822”, Laurentino Gomes vem conquistando leitores dentro e fora do país, utilizando uma linguagem leve para contar histórias que aprendemos desde crianças na escola. Ganhador do Prêmio Jabuti de 2008 em duas categorias com o livro “1808” (Melhor Livro-reportagem e Livro do Ano de Não-ficção), ele é atualmente um dos escritores mais lidos no Brasil e em Portugal. Depois de anos engavetado, “1808” foi lançado em 2007, na comemoração dos 200 anos da chegada da família real ao Brasil, vendendo 700 mil exemplares. Já no segundo livro, “1822”, o autor conta o processo da Independência, tendo como protagonista Dom Pedro I. Depois de deixar um importante cargo executivo na Editora Abril, Laurentino se mudou para Itu, onde se dedica apenas a seus livros. Em entrevista exclusiva à Revista Regional, o escritor conta como foi essa mudança, porque escolheu Itu e revela um pouco sobre seu próximo trabalho, “1889”.
Como era sua vida antes de “1808” e como ela é agora? Qual a maior transformação?
Um livro tem grande poder de transformação. E o primeiro alvo da mudança geralmente é o próprio autor. Minha vida mudou bastante desde que lancei o “1808”, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, em 2007. Entre outras novidades, deixei um cargo importante de executivo na Editora Abril, onde trabalhei 22 anos, para me dedicar totalmente aos livros. Também troquei a cidade de São Paulo, onde vivi durante 21 anos, por Itu. Hoje passo boa parte do meu tempo lendo, pesquisando ou viajando pelo Brasil para dar aulas, fazer palestras e participar de sessões de autógrafos e conversas com os leitores. Confesso que nunca estive tão feliz. O reconhecimento e o contato com os leitores têm funcionado como um elixir da juventude para mim. Sinto-me renovado e com muita energia para me dedicar aos futuros livros.
Como surgiu o Laurentino escritor?
Sou um típico produto da surpreendente mobilidade social brasileira e um exemplo das transformações que a educação pode proporcionar na vida das pessoas. Meus pais eram cafeicultores pobres do Interior do Paraná. Tinham poucos anos de estudo. Apesar disso, valorizavam muito a educação e, em especial, a leitura. Meu pai, que havia estudado só até o quinto ano primário, era um leitor voraz. Lia obras de História e Filosofia que tomava emprestadas do pároco local, um homem bastante culto. Mesmo vivendo em uma região distante e carente de tudo, meus pais conseguiram criar condições para que todos os quatro filhos completassem o curso superior. E foram bem sucedidos. Tenho muito orgulho das minhas origens, o que também reforça em mim um grande senso de missão como escritor. Espero, pela leitura, ajudar a promover a vida de outras pessoas, tanto quanto meus pais fizeram por mim ao me estimular a ler e a se interessar pela história.
Como foi a escolha do tema que viria a desenvolver?
Quando eu era criança, minhas notas na escola eram obviamente melhores em História do que em Matemática, Química e Biologia. História sempre foi na minha vida uma paixão paralela ao jornalismo. Daí a passar escrever livros sobre o tema foi um pulo. Esse interesse também me levou ao Jornalismo. No fundo, a única diferença entre os trabalhos dos jornalistas e dos historiadores está na dimensão do tempo. Repórteres e editores escrevem a história a sangue quente, relatando fatos no instante em que eles acontecem e entrevistando, ao vivo, personagens que no futuro serão objetos de estudo dos historiadores acadêmicos. Sempre tive especial curiosidade pelos momentos fundadores da nacionalidade, que funcionam como o código genético de cada país e ajudam a explicar suas características atuais. No caso do Brasil, minha predileção é o século XIX, o período fundamental na construção do estado brasileiro e da edificação da identidade nacional. É quase impossível compreender o Brasil de hoje sem estudar a vinda da corte de D. João para o Rio de Janeiro e a influente decisiva que esse acontecimento teve na Independência em 1822. Eu diria que todas as nossas características nacionais, todos os nossos defeitos e virtudes, já estavam presentes lá.
Durante quanto tempo você realizou as pesquisas para cada livro?
O primeiro livro, “1808”, deu mais trabalho e consumiu mais tempo de pesquisa. Foram ao todo dez anos. Um dos motivos é que eu ainda procurava conciliar a atividade de escritor e pesquisador com a de executivo da Editora Abril, onde trabalhei durante 22 anos. A segunda obra, “1822”, saiu mais rápido, em três anos, por duas razões. A primeira é que decidi deixar a carreira de executivo para só me dedicar aos livros. A segunda é que a bibliografia e outras fontes de pesquisa utilizadas são muito semelhantes às do “1808”. É quase impossível entender a Independência do Brasil, em 1822, sem estudar o que aconteceu nos 13 anos anteriores, durante a permanência da corte de D. João no Rio de Janeiro. Portanto, a pesquisa do primeiro livro contribuiu decisivamente para o resultado da segunda.
Depois de ficar engavetado por um tempo, você decidiu terminar o “1808” e lançá-lo. Qual a sensação de receber o prêmio Jabuti de “Melhor Livro-reportagem” e “Livro do Ano de Não-ficção”, entre outros?
Acho que todo livro deve passar por alguns estágios de provação. O primeiro é a satisfação do próprio autor com o resultado de seu trabalho. Às vezes, por alguma razão obscura, o livro não fica tão bom quanto o autor gostaria. Pode ser por falta de tempo, de espaço para o texto ou mesmo de inspiração. No meu caso, confesso que fiquei contente com o que escrevi. Com exceção de alguns poucos erros de revisão e checagem, eu não mudaria nada em meus livros. O segundo degrau de validação vem dos leitores. Se o livro não vende, por melhor que seja, é sempre um problema. Se vende, é porque os leitores gostaram do trabalho do autor, sentem que a obra tem alguma contribuição a dar em suas vidas e recomendam a leitura para outras pessoas. Isso, felizmente, ocorreu tanto com o “1808” quanto com o “1822”. Por fim, há a avaliação dos críticos. Ela pode vir em forma de resenhas publicadas ou na forma de prêmios literários. Meus livros tiveram uma acolhida bastante generosa da crítica e ganharam, entre outros, dois prêmios Jabuti e o de Melhor Ensaio de 2008 da Academia Brasileira de Letras. Tudo isso me animou muito a continuar escrever sobre a História do Brasil.
Como é ter um livro como o “1808”, que você achou que não fosse vender, chegar a marca de 700 mil exemplares vendidos?
Nunca imaginei que obras sobre História do Brasil pudessem fazer tanto sucesso. Ainda hoje me surpreendo com a reação dos leitores. Recebo dezenas de e-mails todos os dias, nos quais fazem elogios, sugerem temas para futuras obras e pedem que eu não pare de escrever. Vejo com grande alegria a presença de tantos livros sobre esse tema nas listas de best-sellers. É sinal de que os brasileiros estão olhando o passado em busca de explicações para o país de hoje. E a História serve para isso mesmo. Uma sociedade que não estuda História não consegue entender a si própria porque desconhece as razões que a trouxeram até aqui. E, se não consegue entender a si mesma, provavelmente também não estará preparada para construir o futuro de forma organizada e estruturada. Se você não sabe de onde veio, como saberá para onde vai? O estudo de História é, portanto, fundamental para a construção do Brasil do futuro.
O que significou para você, ter um livro que ficou três anos consecutivos como o mais vendido, fora do seu país, em Portugal?
A acolhida entre os leitores portugueses tem sido muito boa. Proporcionalmente, o “1808” vendeu mais em Portugal do que no Brasil. Em setembro de 2010, ao lançar o “1822” em Portugal, vivi um experiência nova e encantadora. Antes da sessão de autógrafos na cidade do Porto, promovida pela minha editora, dei aula sobre História do Brasil para um grupo de estudantes adolescentes de uma escola de ensino básico. Ali pude compreender perfeitamente que o descobrimentos a respeito da história brasileira é muito grande entre os portugueses. Eles mal sabiam o que significa a data 1822 para nós. Mas a recíproca também é verdadeira. Nós brasileiros conhecemos pouco sobre a história portuguesa e geralmente não temos noção do que aconteceu a D. Pedro I após a abdicação à coroa brasileira, em 1831, quando ele voltou a Portugal para enfrentar o irmão D. Miguel na maior e mais sangrenta guerra civil portuguesa. O sucesso dos livros indica que o interesse pela história desses países tem crescido muito nos dois lados do Atlântico. E isso é uma ótima notícia. Brasileiros e portuguesas compartilham raízes comuns e precisam conhecê-las melhor para entender seus próprios países hoje.
O livro “1822” já vendeu quantos exemplares?
Somados, os dois livros já venderam mais de um milhão de exemplares no Brasil e em Portugal. Sozinho, o “1808” já ultrapassou a marca dos 700 mil livros vendidos. O “1822” já chegou pelo menos à metade disso. São números surpreendentes em um país que tem a fama de ler pouco. O índice de leitura entre os brasileiros é de apenas 0,9 exemplar per capita por ano. Ou seja, menos de um livro por pessoa. Na França, esse índice é de quase dez livros por pessoa por ano. Mais surpreendente ainda é que o fenômeno esteja ocorrendo na área de História do Brasil. Sinto-me muito orgulhoso disso.
Ao que você acha que se deve esse sucesso dos dois livros, sendo temas que aprendemos na escola? Você acredita que se deve a maneira de conduzir a história e a linguagem que utiliza neles?
Minha contribuição ao estudo da História do Brasil é de linguagem. Uso a técnica e a linguagem jornalísticas, que aprendi ao longo de 30 anos como repórter e editor de jornais e revistas, para tornar história um tema acessível e atraente para um público mais amplo, não habituado a ler sobre o tema. Um bom escritor precisa ter a habilidade de escolher as palavras para contar uma estória ou transmitir uma ideia. Ou seja, tem de saber escrever. Tento demonstrar com os meus livros que a História do Brasil pode ser fascinante, divertida e interessante, mas sem ser banal.
O preconceito entre brasileiros e portugueses existe? Por quê?
Ainda existe algum desentendimento entre brasileiros e portugueses, mas acho que está diminuindo. Em Portugal até algum tempo atrás se reclamava muito da concorrência dos dentistas brasileiros. Ao mesmo tempo, os portugueses adoram músicas, telenovelas, filmes e livros produzidos pelos brasileiros. No Nordeste do Brasil, a presença de turistas portugueses é um grande fenômeno. Ou seja, quase dois séculos após a separação, finalmente estamos conseguindo nos entender. O nosso desafio hoje é de aceitação das nossas raízes comuns. Nós brasileiros somos herdeiros de uma cultura portuguesa e há virtudes nessa herança. Devemos aos portugueses a bem sucedida ocupação territorial coisa que os espanhóis não conseguiram nos seus territórios americanos. Eles também nos legaram uma cultura relativamente tolerante do ponto de vista racial, político e religioso. É uma cultura de negociação capaz de encontrar soluções no meio de grandes adversidades e que poderão ser usadas no futuro para resolver os nossos problemas.
Quem é o grande público dos seus livros?
Desde o lançamento do primeiro livro, passei a percorrer o Brasil para dar aulas, palestras, participar de sessões de autógrafos e bate-papo com os leitores. Já visitei mais de cem cidades, num total de quase 300 eventos. Tenho observado que o público é o mais amplo possível. Tem governadores, prefeitos e presidentes de bancos, mas também empregadas domésticas, crianças e adolescentes. Por isso faço tanta questão de ir ao encontro do leitor. Sou contra escritores que fazem livros e se escondem dentro de casa, evitando qualquer contato com os leitores. Eu, ao contrário, dou entrevistas, tenho comunidades no Facebook e no Twitter e também um site na internet, pelo qual os leitores podem acompanhar a minha agenda, ler entrevistas e artigos publicados sobre mim e minha obra, discutir os posts que faço no meu blog e enviar e-mails para minha caixa postal. É como naquela música do Milton Nascimento: “Todo artista tem de ir aonde o povo está”. Eu corro atrás dos meus leitores.
Na abertura do evento “Diálogos”, em Itu, você comentou que seu próximo livro será “1889”. Pode contar um pouco sobre ele?
Essa é uma ideia que foi tomando corpo naturalmente a partir da publicação do primeiro livro. O estudo dessas três datas é fundamental para entender o Brasil de hoje. Elas explicam a construção do Estado brasileiro durante o século XIX. Depois de permanecer mais de três séculos como uma grande fazenda extrativista de Portugal, o Brasil foi inventado como país em 1808, ano da chegada da corte de D. João. Nenhum outro período testemunhou mudanças tão profundas e aceleradas quanto os 13 anos de permanência da família real no Rio de Janeiro. A principal consequência foi o Grito do Ipiranga, marco da nossa Independência em 1822. Os riscos da separação de Portugal, no entanto, eram tão grandes que a elite brasileira da época preferiu manter o regime de monarquia constitucional e o poder concentrado nas mãos do imperador Pedro I, em vez de se aventurar em um projeto republicano que poderia conduzir à guerra civil e à fragmentação do território nacional. Essa situação permanece até 1889, quando ocorre a drástica mudança de regime político, de monarquia para república.
Há quanto tempo se mudou para Itu e porque a escolheu para viver?
Além da boa qualidade de vida, Itu tem uma vida cultural muito mais relevante e intensa do que a média das cidades brasileiras com o mesmo porte. Nesse quesito, é mais importante do que muitas cidades maiores em população e produção econômica. Sorocaba, por exemplo, embora seja maior que Itu e esteja situada na mesma região, tem uma vida cultural relativamente modesta. O mesmo raciocínio vale para Campinas. Para mim, a explicação para esse fenômeno está na história. Quatrocentos anos de história fazem uma enorme diferença na vida de uma cidade. É como um código genético que foi se aprimorando ao longo de quatro séculos pela presença de um Jesuíno do Monte Carmello e de um Almeida Junior, entre outros expoentes das artes e da cultura nesta cidade. Por isso, aqui é um dos berços da República brasileira. Tem o Museu Republicano e abriga uma das maiores bibliotecas especializadas no tema. São essas as razões que me trouxeram a Itu.
entrevista e texto: Gisele Scaravelli
foto: Arquivo pessoal