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Post: Uma aventura pelo Velho Chico

Uma aventura pelo Velho Chico

Um dos muitos olhos d’água na nascente do Velho Chico

“Água que nasce na fonte serena do mundo e que abre um profundo grotão” (G.Arantes)

Ocorre que o São Francisco não nasce de uma fonte. Nasce de muitas. Como seria confuso para os turistas não ter um ponto exato de afloramento do mais brasileiro dos rios, cuidou-se de eleger um, dentre 153 olhos d’água que brotam num cenário a 1.200 metros de altitude, na Serra da Canastra, sudoeste de Minas Gerais. Junto a ele se colocou um marco em pedra e uma imagem do santo que batizou o rio, porque foi num quatro de outubro que a expedição de André Gonçalves e do florentino Américo Vespúcio avistou a larga foz, no longínquo ano de 1501.

Numa paisagem que pode vir emoldurada por chuva fina e névoa, entremeada com súbito clarear do sol, a água verte de inúmeros pontos, umedecendo o solo. Aos poucos, esses filetes modestos se vão juntando e dão origem ao caudal que só se desfará 2.830 km além, depois de cruzar cinco Estados e se lançar no Atlântico, entre Alagoas e Sergipe. Muito antes, porém, seu berço é no parque nacional que abriga a serra em formato de cesta ou baú, a Canastra, que outrora se usava para guardar os mais diversos bens. Na verdade, ao lado dessa serra, o parque tem outra, a da Babilônia. Criado em 1972, tem 200 mil hectares, mas menos da metade dessa área já está regularizada. Mesmo assim, espalha-se por cinco municípios e tem quatro portarias de acesso, com estradas de terra que vão das transitáveis para automóveis comuns àquelas que exigem tração apropriada, sobretudo em épocas de chuva.

São trilhas para caminhadas, cachoeiras, piscinas naturais e imponentes paredões rochosos. A Canastra tem a peculiaridade de se encontrar num ponto de transição entre o final da Mata Atlântica e o início do cerrado, e sua fauna e flora refletem essa condição. É o habitat do lobo-guará, do tamanduá-bandeira (fácil de avistar), do veado campeiro, da ema. Santuário procurado por observadores de aves, estrangeiros em sua maioria. Com frequência, se flagram espécies como o sabiá do campo, a coruja buraqueira, o gavião do rabo branco, o gavião carcará, o inhambu e outras, mais arredias. Dentre as atrações, a mais procurada é a sua maior cachoeira, a Casca d’Anta, que despenca vertiginosa de 186 metros, na parte alta do parque, onde estão as nascentes do São Francisco e de onde se avista a Babilônia e a vastidão verde abaixo. Para ver a Casca d’Anta por baixo, o acesso é outro, e é impossível se aproximar sem sair molhado pelo borrifo poderoso de uma das mais altas cachoeiras do Brasil.

As possibilidades de hospedagem se espalham pelos municípios que contornam o parque. As melhores alternativas estão em Vargem Bonita e São Roque de Minas, a capital da Canastra. Lugarejos pacatos que seguem mansos o compasso dos dias. Tranquilidade sábia dos homens que, na pracinha central, jogam cartas, contam casos, ou simplesmente contemplam a vida a passar. O mais a fazer é, talvez, buscar hospedagem fora das cidades, em pequenas propriedades que, como a Fazendinha da Canastra, expõem o desnudo esplendor da cozinha mineira, do fogão a lenha, dos quitutes que repetem receitas de gerações a fio, de preciosidades que requerem calma para fazer e para comer.

No capítulo da gastronomia, é também o berço de um dos queijos mais famosos do país, o da Canastra, feito em inúmeras propriedades, um patrimônio cultural. É seo Zequinha, no Mirante da Natureza, quem concorda gentilmente em permitir o acesso ao ambiente zeloso da queijeira e contar um pouco da técnica de obter as variações que vão do queijo fresco, passando pelo meio curado até o curado, a depender dos dias em que as peças permaneçam depositadas na alvura das prateleiras.

 Velho Chico, vens de Minas / De onde o oculto do mistério se escondeu / Sei que o levas todo em ti, não me ensinas  /

E eu sou só, eu só, eu só, eu.   (C. Veloso)

 Visto o berço privilegiado, fica para trás o nascedouro para se perseguir o rumo norte, que toma o Velho Chico, pelas vastidões do Planalto Central. São mais de 500 km e a percepção de que as últimas manchas de Mata Atlântica já ficaram longe. Firma-se a paisagem de árvores de porte menor e galhos retorcidos, no solo de tons avermelhados do cerrado. Aqui e ali, perfilam-se os grupos de buritis, tão presentes na obra de Guimarães Rosa, sabedor daqueles caminhos, e do sem fim de utilidades das folhas, dos frutos e das fibras daquela palmeira para o povo que ocupou o Brasil Central: cobertura das casas, cestaria, vestuário, artesanato.

O destino é Pirapora, onde tinha início a navegação do São Francisco por embarcações maiores. O rio ali se apresenta majestoso, um caudal de água castanha em cuja margem se estende a cidade. Pirapora (peixe que salta, em língua indígena) recebeu levas de garimpeiros, pequenos criadores de gado e aventureiros. O rio continua a ser o mais ilustre e poderoso morador. Incorpora-se ao cotidiano, mesmo estando, segundo me afirmam os pescadores, cerca de um metro baixo do que normalmente estaria. Mas, é no longo calçadão que segue pela borda da água que as famílias se encontram, as crianças brincam, os jovens namoram, os idosos caminham, os esportistas têm suas quadras, os bares e restaurantes se alinham. A cidade, de alguma forma, se acasala ao seu rio. Ali se prova o peixe na brasa e uma moqueca de surubim simplesmente irrepreensível. E por ali se encontram os sorvetes com as frutas do cerrado, surpreendentes ante a mesmice dos sabores a que estamos habituados no Sudeste: o pequi, por exemplo, ou o araticum (aqui chamado cabeça-de-negro), dentre uma vasta lista exótica.

A queda de 186 metros da Casca d’Anta

A navegação fluvial começou em 1871, mas ganhou corpo em 1902, com a chegada dos grandes vapores, os gaiolas, que a partir dali rumavam para a Bahia. É um tempo que se foi há muitas décadas, embora outros barcos menores ainda naveguem por ali e rio abaixo. Dos grandes gaiolas restou uma testemunha, única no mundo: o Benjamin Guimarães, fabricado em 1913 nos Estados Unidos, e que navegou pelo rio Mississipi antes de vir desmontado ao Brasil, assim como outros vapores. Ele fazia o trajeto de 1.300 km até Juazeiro, na Bahia. O São Francisco era a via fluvial para quem vinha do Nordeste e, desembarcando em Pirapora, rumava para Belo Horizonte e o Rio de Janeiro. Hoje, o Benjamin Guimarães faz um único passeio semanal, aos domingos, para turistas. Tem três pisos distribuídos em 44 metros de comprimento e oito de largura, conservando as cabinas duplas, os banheiros e o bar que busca evocar uma época áurea.

E, para não ficar também atrás, luta a tradição das carrancas, esculpidas em madeira, com feições assustadoras. Elas seguiam na proa para afastar os espíritos ruins do rio, especialmente o Caboclo d’Água, que assombrava pescadores e navegantes, chegando a virar embarcações, na crença popular do Médio São Francisco. No Mercado Municipal, encontro o vendedor que expõe as peças produzidas por uma associação dos carranqueiros, e que fala da dificuldade de preservar algo da tradição. As carrancas, porém, tiveram a sorte de encontrar um novo caminho, longe das águas: são levadas a todo o país como peças de decoração para ambientes internos e externos. Sobrevivem, assim, criando um elo com o passado que se foi.

De Pirapora, o Chico segue para Januária e o Nordeste, algo atormentado por ameaças diversas: a devastação das margens, o assoreamento do leito, o remanejo de suas águas, as insanidades que o homem comete contra o planeta. Mas segue silencioso e profundo, como o olhar dos pescadores solitários que contemplam sua passagem, reconhecendo-se de alguma forma na calma imponência do rio. O das águas que, a despeito de tudo, alcançam o oceano e, feito isso, visto tanto, servido tanto, arrematam-se silentes como em outro verso da canção citada ao início: “E sempre voltam humildes para o fundo da terra, para o fundo da terra”.

O berço sagrado, onde o novo e velho Chico está sempre a renascer.

 texto e fotos: Valderez Antonio Bergamo Silva

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